UMA LITERATURA FANTÁSTICA PARA AS DORES REAIS DE NOSSA AMÉRICA LATINA. A casa dos espíritos - Isabel Allende

 

ALLENDE, Isabel. A Casa dos Espíritos. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1994.


Telma R. R. de Melo


Acontece que me canso de meus pés e de minhas unhas,
do meu cabelo e até da minha sombra.
Acontece que me canso de ser homem. 
 Pablo Neruda


    O romance de estreia de Isabel Allende, “A casa dos espíritos”, de 1982, versa sobre a história das quatro gerações da família Del Valle (1905 -1975), cuja personagem central é Clara, que surge menina na narrativa, com poderes sobrenaturais, e a termina como vó fantasma que perambula por uma mansão já em decadência. Por intermédio dos ricos e ilustres Del Valle, que mais tarde se unem aos Trueba, o leitor conhece várias passagens da história chilena, desde seus grandes latifúndios herdados pelo colonialismo e marcados pelo patriarcado, até os duros porões de sua terrível ditadura.
   
A obra se altera entre a primeira e terceira pessoa, entre as vozes distintas e opostas do amargo e ressentido viúvo de Clara, Esteban Trueba, que representa o que há de pior em termos de valores nas oligarquias de direita, e da jovem Alba, neta de Clara e militante revolucionária de esquerda. Entre essas duas vozes, os cadernos da própria Clara, trazendo os registros familiares dessas memórias que se dividem entre uma biografia e uma ficção de realismo fantástico.

    A riqueza e exuberância da cultura latino americana está representada no livro “A casa dos espíritos”, tanto na grande quantidade de personagens e de eventos fantásticos, quanto nos registros da fartura das festas, com abastança de comida, danças e música; nas crenças, que ilustram o sincretismo ocorrido nessas terras entre a fé católica e o folclore regional, e na opulência e sensualidade desse povo que não se furta aos desejos da carne. No entanto, a miséria, a fome e a catástrofe também estão presentes no livro, especialmente na apresentação da vida dos camponeses, envolta em ignorância e dependência dos humores de seus patrões.

    A história da família Del Valle-Trueba é, de certa forma, a história dos países latino-americanos, resguardada toda a magia que nos faltou para suportar as mazelas dessa trajetória, e que no livro funciona como um opioide. Ali está representada a destruição da cultura ameríndia, e a impotência desses povos contra os europeus colonizadores, que os reduziram a servos de feudos então chamados de fazenda. Também ali está marcada a ignorância cultural que engendrou o eterno sentimento de inferioridade que ainda nos marca a nós, donos de uma das culturas mais ricas do planeta: vergonha da língua, vergonha dos hábitos, vergonha das crenças.

    O panorama político, apresentado como fundo para a narrativa, traz a ascensão e a queda de um governo comprometido com as causas camponesas, socialista por definição, e representado pela figura de “O Candidato”, para o qual a autora não dá nome no texto, mas que, pelas fortes características biográficas da história, sabe-se tratar-se do ex-presidente Salvador Allende, deposto durante o golpe militar de 1973, e tio da autora. Repete-se no Chile os governos ditatoriais que já se apossavam das jovens democracias latino-americanas. E então, lá, como aqui, temos os mantos negros da censura, dos campos de concentração e da tortura, às quais nem mesmo “O Poeta” (Pablo Neruda, também não nominado) pôde suportar.


    Daí certo desconforto que nos dá diante desse espelho de águas turvas para nossos próprios infortúnios. Trata-se de uma história emocionante, brilhante em sua abundância de descrição de cenários e personagens maravilhosos e, ao mesmo tempo, tão reais em suas dores e pungências. Leitura que faz chorar, bem mais do que pelos dramas vivenciados pelos personagens, mas por se saber que a América Latina mal se curou de suas antigas feridas, outras novas já se abrem, em uma mão que pede socorro.

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Comentários

  1. Como sempre supreendente!!! Sua leitura do livro consegue ser tão poética e tão profunda quanto o próprio texto que toma como fonte. Sua resenha é tão prazerosa de ser lida que é um convite irrecusável de leitura do livro que serviu de inspiração para ela.

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  2. Resenha muito boa, muito dinâmica. Me deu vontade de ler o livro. Parabéns.

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    1. Obrigada Roberto! Vale a pena ler. É uma obra extensa, mas a escrita é leve e divertida.

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  3. Parabéns pela resenha, Telma. Você conduziu levemente o passeio pelo texto, ressaltou pontos relevantes como a história dos países latino-americanos e deixou o convite para ler esse romance. Já entrou aqui para minha lista!

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    1. Obrigada Rosinete. Essas indicações nos ajudam muito a preparar nossas leituras de férias.

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  4. Parabéns Telma! Escrita leve e envolvente, que soa como um convite irrecusável a ler o livro. Anotado como uma das minhas próximas aquisições literárias!

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  5. Fiquei curiosa para ler o livro. Gosto muito de histórias que apresentam fatos históricos ao longo do enredo, sinto que a conexão que criamos com os personagens facilita a compreensão dos fatos.

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    1. Verdade. Concordo muito com você. A questão da empatia. Beijos Carol.

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  6. Uma obra que vale a pena a leitura, com certeza. Parabéns pela resenha, realmente, poética.

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