Sobre salvar o fogo, o manto e a vingança
VIEIRA JUNIOR, Itamar. Salvar o Fogo. São Paulo: Todavia, 2023. 318p.
Patricia de Paula Gonçalves
Mestrado em Educação - UNICAMP
“Nem mesmo essa dor quebrantou seu encanto”, diz Zoraide a Luzia ao elogiar sua beleza de mulher. Uma beleza que ultrapassa o físico: é encantamento. Magia capaz de desfazer qualquer quebranto ou maldição. Zoraide constata a beleza de Luzia ao fitar seu rosto, mas lê sua força nas mãos manchadas de sabão. Nestas mãos talhadas pelo trabalho, a linha da vida se sobressai bem delineada e forte. A linha é como o rio Paraguaçu, que ambienta o encontro das duas e de todas as histórias entrecruzadas em “Salvar o Fogo”, segundo romance de Itamar Vieira Junior.
Itamar é soteropolitano, geógrafo, doutor em estudos étnicos e africanos pela Universidade Federal da Bahia. Atuou como analista em reforma e desenvolvimento agrário por 15 anos no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), em projetos de assentamento, agricultura familiar e no serviço de regularização de territórios quilombolas. A fonte de inspiração para seu primeiro romance, “Torto Arado”, foi este trabalho como servidor público do Incra. Através de sua sensibilidade política e estética, tem possibilitado que, não só o Brasil, mas outros diversos países do mundo conheçam a história da família de Belonísia e Bibiana e, consequentemente, se aproximem das lutas por terra das comunidades quilombolas da Chapada Diamantina.
Certamente essas experiências como extensionista rural também foram decisivas para a escrita de “Salvar o Fogo”. O livro aborda a luta de terras de uma família da mesma região, o recôncavo baiano. Em algum ponto do livro, há um encontro entre personagens, inclusive. Mas desta vez, o destaque está na herança indígena dos Tupinambá de Olivença.
A história começa com uma narrativa pouco convencional de parto, no qual a mãe não deseja o bebê. A mulher quase o deixa escapar pelas águas do rio, mas, em um rompante de arrependimento, pesca o menino com o saiote do vestido. Depois, descobrimos que ele ficou órfão e vive com o pai e a irmã (Luzia) em um povoado dominado por monges desde o século XVII. Muito da história se passa no mosteiro e na Tapera da família e logo é possível notar as relações de poder estabelecidas entre a igreja e a população: Luzia é estigmatizada por sua ancestralidade indígena e por sua relação íntima com os elementos da natureza, especialmente o fogo; Moisés, o menino parido no início do livro, sofre diversas violências na escola dos padres; o pai, Mundinho, é pressionado a pagar impostos para a ordem religiosa.
Diversas violências, com consequências emocionais, físicas e materiais são reveladas. Mas, o que de fato chama a atenção é a altivez das personagens que, com elegância e dignidade, nunca se deixam derrotar. Para a violência há sempre uma resposta: a vingança. Uma vingança específica, a Tupinambá.
A antropofagia compõe um conceito mais amplo de vingança desenvolvido pelo povo Tupinambá. Antes de ser morto, o inimigo era integrado à comunidade e convivia como um igual por meses, participando de ritos, comendo da mesma comida, usando as mesmas vestimentas e até se envolvendo com as mulheres do grupo. Era o tempo necessário para se igualar aos Tupinambás, para passar de inimigo a humano, quando, finalmente, poderia ser sacrificado com um só golpe de borduna na cabeça. No âmbito cerimonial, o objetivo do guerreiro era esfacelar o crânio do oponente. Em seguida, a carne do morto seria assada e distribuída entre seus familiares e amigos. Obviamente, alimentar-se da carne, neste caso, tem valor simbólico, de incorporação das qualidades do adversário, e não nutricional. Havia, portanto, um processo de equiparação, “humano para humano”, anterior ao sacrifício. Além de uma noção de apropriação dos talentos a favor da comunidade.
Durante essa e outras cerimônias pré-colonização, alguns indígenas tupinambás, homens e mulheres com papel de liderança nas comunidades, eram autorizados a utilizar um manto composto de penas. Existem onze mantos no mundo. Dez estão na Europa e um foi resgatado da Dinamarca para o Brasil, tendo chegado ao museu nacional (Rio de Janeiro) este ano. Em 2018, um incêndio destruiu dois terços do acervo do museu nacional e um dos argumentos utilizados durante a negociação de repatriação do manto foi a necessidade de reconstituição deste acervo.
Glicéria Tupinambá, artista e pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, esteve envolvida no processo de repatriação. Além disso, foi a primeira pessoa, em 400 anos, a confeccionar um novo manto Tupinambá. Há um agradecimento para ela ao final do livro “Salvar o Fogo”. A personagem “Luzia” também confecciona um manto quando a vingança de sua família é concretizada.
O fogo permeia toda a história, mas sua simbologia parece estar sintetizada na explicação que Itamar faz sobre o domínio e a vingança, isto é, que os homens brancos dominaram o fogo, mas não se tornaram xamãs por temerem o desconhecido. A relação que os colonizadores estabeleceram com o Brasil sempre foi de domínio e espoliação da terra e esse domínio se estende até hoje, mas a passividade dos tupinambás e de outras populações degradadas é apenas aparente. Há sempre a possibilidade do “golpe de borduna”, vindo de quem conhece verdadeiramente os mistérios da terra. De quem cultiva a terra, se alimenta de seus frutos e enterra seus mortos nela. Quem, assim como Luzia, Glicéria e Itamar, mantém no peito acesa a chama da vingança (a Tupinambá), poderá seguir lutando para salvar o fogo, este fogo que serve de metáfora tanto para a coragem quanto para a história.
Referências
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