ALTERIDADE POSSÍVEL AOS OUVINTES. Contos negreiros - Marcelino Freire (audiolivro)

                                                  


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FREIRE, Marcelino. Contos negreiros. Narração: Marcelino Freire. Rio de Janeiro: Editora Record. 2010.

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Natália Mazzilli Dias

FE / Unicamp

 

“Bicha devia nascer sem coração. É, devia nascer. Oca. É, feito uma porta. Ai, ai, não sei se quero chá ou café... Não sei. Meus nervos à flor de algodão. Acendo um cigarro e vou assistir televisão.”

“Zé, o que deu na tua cabeça, ora joça? Estamos longe de Miami, homi. Acapulco, Suriname... Nosso destino é um só. A gente não tem dólar, a gente não tem cartão. Deixa de imaginação. Você num tem medo de avião? Tanta asa que cai pelo chão... [...] Zé, estou sendo franca. Olha bem para a nossa cara. Por que partir para Dinamarca, Caracas, Cancun, Congo? Cachorro a gente enterra em qualquer canto. Enterra aí no quintal, Zé. E pronto.”

 

Escritas em 16 cantos, a narrativa de Marcelino Freire é crua e cruel: retrata as diversas facetas da realidade negra no Brasil. O autor aborda temas como a herança escravocrata do negro na sociedade brasileira, os relacionamentos homossexuais, a exploração e o abuso sexual de crianças e, entretecendo essas histórias, o racismo.

Essa foi a minha primeira experiência ouvindo um audiolivro e, como é comum às primeiras experiências, no início trouxe bastante dificuldade. Estou acostumada, talvez fruto da minha geração, a fazer mais de uma atividade ao mesmo tempo e, quando ouço podcasts ou músicas, faço outras coisas como dirigir ou lavar louça. Logo percebi que isso não seria possível ao fruir literatura – assim como não o faço quando estou lendo algo impresso.

Aos poucos, encaixei essa leitura em momentos com menor distração, ainda que não estivesse totalmente parada, pois minha atenção se desviava muito facilmente. Passei a ouvir o livro enquanto caminhava, enquanto tomava sol... A narração de Marcelino Freire, entretanto, foi o que me fisgou. Mais do que um autor lendo o seu próprio texto, o que com certeza dá uma interpretação mais adequada, era um autor atuando seu próprio texto.

Assim como a escrita e o decorrer das histórias, tão fortes e duras, a leitura de Marcelino é marcada por um tom profundo, às vezes melancólica e outras numa voz doída, impossível de não impactar o leitor-ouvinte. O tom irônico, tantas vezes debochado.

Os cantos são repletos de rimas, acompanhados por sons de fundo como “bateção” de panelas, correntes arrastadas ou batuques. Finalmente, a leitura-audição desse livro mostrou-se uma experiência transformadora, tanto pelo conteúdo como pela forma.

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