DIVAGAÇÕES TRANSVERSAIS ENTRE A FAVELA E O ASFALTO. O sol na cabeça: contos - Geovani Martins

 

MARTINS, Geovani. O sol na cabeça: contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. [audiolivro narrado pelo próprio autor]

Paula Crepaldi Campião

A experiência de degustar da leitura/audição de um audiolivro foi mais desafiadora do que eu pensava. Apesar de ser uma leitora ávida de livros impressos e digitais, me senti impaciente e com dificuldades de concentração nas tentativas de ouvir o primeiro livro escolhido por mim para a atividade, um romance.

Somado à dificuldade de ser absorvida pelo audiolivro, eu não consegui somente ouvir a história sem me dedicar a outras atividades em paralelo, como mexer no celular ou lavar a louça. Assim, três a cinco minutos depois da narrativa começar, já não estava prestando atenção na história, mas estava absorvida em meus próprios pensamentos cotidianos.

Decidi então trocar o romance por uma coletânea de contos que há tempos figurava na minha lista de leituras: O sol na cabeça: contos de Geovani Martins. O livro foi publicado sob o selo da Companhia das Letras em 2018 e logo foi traduzido, tornando-se um sucesso de vendas no mundo. Além de estar desejosa por esta leitura, a escolha por uma coletânea de contos me possibilitou uma maior imersão na experiência da leitura/audição, já que ela é constituída de textos mais curtos, o que me permitiu fazer pausas sem perder o rumo da história.

Fonte: Capa do livro. Disponível em: <https://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=14481>

Falando nela, a obra formada por treze contos chama atenção pela linha que une os enredos em uma mesma unidade temática: a periferia do Rio de Janeiro, que não funciona só como cenário, mas também como universo central da vida dos personagens, influenciando suas ações, linguagem, desejos e anseios. O audiolivro narrado pelo próprio autor traz uma potencialidade diferente às tramas, tanto pelo sotaque carioca - que para mim, uma leitora/ouvinte paulistana, fez toda a diferença para a contextualização espacial e para as imagens projetadas pela minha fantasia durante a escuta - quanto pelas entonações, ênfases e tonalidades dadas por ele à sua própria escrita, ali lida em voz alta.

O conto Rolézim, que abre o livro, carrega um ritmo natural, marcado por uma linguagem informal, recheada de gírias. Nele, acompanhamos o narrador-personagem a uma ida à praia em um dia de muito calor (“Sem neurose, não era nem nove da manhã e a minha caxanga parecia que tava derretendo”). Mais do que um simples trajeto, acompanhamos sua divagação imersiva sobre seus amigos (Poca Telha, Vitim, Tico e Teco); sua relação e os perrengues para comprar/fumar maconha; a memória de operações no morro que tiraram a vida de conhecidos; o sentimento de justiça quando os “playboys”, que haviam lhe negado “seda”, tiveram os celulares roubados pelos “menó”; e a repressão policial seletiva, dada pelos policiais que até mesmo vendiam erva para os gringos e playboys, mas que extorquiam, agiam com violência ou  levavam para a delegacia seu grupo de amigos.

O olhar infantil está presente em alguns contos e evidencia a mistura de beleza e tristeza dada pela interação entre a inocência própria das crianças junto à dureza da favela. Do menino Paulo que brinca escondido com o revólver do pai em Roleta-Russa ao garoto Breno que observa uma borboleta cair em uma frigideira repleta de óleo em sua cozinha em O caso da borboleta, a influência da família e do meio se faz forte para suas ações e divagações.

Meu conto favorito, Mistério da vila, também traz crianças como protagonistas. Ruan, Thaís e Matheus brincam na rua enquanto se desafiam a chegar perto da casa de dona Iara em noite de macumba. Ao mesmo tempo em que sentem, nas palavras do autor, “um medo sincero” e o disparar de seus corações pelos cheiros e barulhos do ritual, a idosa exerce um fascínio sobre os jovens, que assistem escondidos as cerimônias.

Pelo compartilhamento das memórias das crianças pelo narrador onisciente, nos é revelado como o preconceito com o candomblé coexiste com sincretismo religioso naquele ambiente: de forma sigilosa, dona Iara é chamada à casa dos moradores que, por medo de como serão olhados pela comunidade, fazem pactos de nunca comentar o que aconteceu. Matheus, crente, foi benzido e curado de uma febre; Ruan, católico, teve sua casa empestada por carrapatos, o que foi resolvido por um trabalho de dona Iara, que matou três parasitas e pediu para avó do menino levá-los a uma encruzilhada; e Thaís, testemunha de Jeová e proibida de comer os docinhos de Cosme e Damião, sabe que nasceu por intervenção da “macumbeira” que “desamarrou” a barriga de sua mãe.

Uma noite, enquanto as crianças aguardavam escondidas pelo rito de dona Iara, veem a senhora ser levada ao hospital. O medo da possibilidade da perda da idosa passa a ser maior do que o receio sobre o que era realizado em sua casa. Thaís pede a Jeová que dona Iara não morra, até mesmo na reunião de domingo, “mesmo sem saber se era pecado orar pela macumbeira dentro da casa de Deus” e Ruan tenta rezar para Nossa Senhora Aparecida por julgá-la parecida com dona Iara, mas encontra conforto em São Jorge, já que se “ele era capaz de matar um dragão de verdade, poderia então fazer qualquer coisa nesse mundo”. Matheus não aparenta se preocupar com a vizinha, o que acarreta uma briga e a revelação do segredo de que ela havia curado sua febre.

Felizmente, dona Iara volta do hospital e ao ser recebida pelas crianças diz que sobreviveu por ajuda de Deus e, para elas, “foi muito estranho ouvir a macumbeira falar em nome de Deus”. Ao contar sobre a promessa feita a São Jorge, dona Iara diz que sempre soube que Ruan era “filho de Ogum”. No desfecho, as crianças fantasiam, como se elas assistissem um filme de ação sobre as histórias dos orixás e Ruan passa, então, a “brincar com medo de mentira”, indo sozinho à casa da senhora.

       Fonte:  Foto do autor Geovani Martins por Pedro Garrido/CLAUDIA. 
Disponível em: <https://claudia.abril.com.br/noticias/geovani-martins-livro-nove-paises-sol-cabeca>

Essa sensibilidade sobre os contrastes e coloridos da favela está presente em toda a obra, compondo um universo com personagens extremamente humanos - nem vilões, nem heróis, mas ambíguos. Paralelamente, a desigualdade social aparece como pano de fundo, isto é, como uma condição sobre a qual a história se constrói e não como uma característica depreciadora dos personagens. Por fim, a naturalidade, através da qual as tramas se desenrolam, torna as histórias leves de serem ouvidas (e imagino que também de serem lidas), mesmo com a temática por vezes pesada, deixando-me feliz pela mudança de planos iniciais e grata pela decisão de ter mergulhado nas narrativas trazidas nos contos de O sol na cabeça.

Para saber mais, sugiro assistir a entrevista do autor para o programa Conexão do Canal Futura:

https://youtu.be/Gr486e6F2UQ


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