O QUEIJO E OS VERMES - Carlo Ginzburg
O Queijo e os Vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela inquisição
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GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. São Paulo: Cia das Letras, 2006.
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Vanja Ramos Vieira de Campos
O antropólogo e historiador italiano, Carlo Ginzburg é conhecido por ser um dos pioneiros no estudo da micro-história. Como se aplicasse o zoom sobre uma imagem fotográfica, o autor estabelece uma delimitação temática de reconstituição de um microcontexto dentro do quadro maior que envolve o assunto Inquisição. Em O queijo e os vermes, Ginzburg resgata no tempo e no esquecimento um processo de condenação por heresia, julgado no século XVI.
A reconstituição dos microcontextos e os personagens, que poderiam simplesmente ser figuras anônimas e despercebidas, envolvem o leitor numa viagem pelo tempo ao cotidiano da comunidade do Friuli, na Itália. O relato apresenta diversos personagens descritos de forma a contribuir para um visão mais ampla de como os aldeões, camponeses, tecelões e moleiros, que compunham a sociedade das classes mais baixas, viviam nesta região da Itália.
Mas a narrativa não se reduz apenas a isto. A análise de Ginzburg, como historiador, desenrola-se a partir de uma especulação aprofundada das fontes, compreendendo traços etnográficos. Inicialmente, a leitura exige um pouco mais de atenção e dedicação, dada a inclinação do autor por uma narrativa histórica que se distingue da narrativa literária, uma vez que se pauta pelas fontes. O leitor pode inicialmente se entediar com o movimento da história, a preocupação pelo perfeito reconto dos fatos, procedências, fontes ou com as citações em latim. Entretanto, é inevitável se envolver por Domenico Scandella, apelidado de Menocchio, um moleiro pobre que foi julgado pela Inquisição por expressar ao outro o que pensava sobre Deus e a criação do universo.
"(...) tudo era um caos, isto é, terra, ar, fogo e água juntos, e de todo aquele volume se formou uma massa, do mesmo modo como o queijo é feito do leite, e do qual surgem os vermes, e esses foram os anjos...".(p.102)
A história de um herege do século XVI ganha contornos investigativos particulares, não apenas sobre as ideias e pensamentos de Menocchio, o moleiro, mas sobretudo pela cultura popular e erudita da época. Em sua pesquisas como historiador Ginzburg sentiu-se particularmente atraído pelo número de páginas do processo produzido pela Inquisição, acerca de Domenico Scandella, o pobre aldeão. O que poderiam conter em tantas páginas dedicadas a um homem simples?
Os pormenores deste caso verídico, que tornaram o personagem um caso à parte para a Igreja, exigem uma viagem pelo labirinto de sua mente. Compreender as ideias do moleiro de Friuli exigirá do leitor decifrar como o acesso ao conhecimento produziu tamanha diversidade de pensamentos num simples camponês. E posso adiantar que será doloroso ter que se despedir da companhia desse peculiar personagem depois de participar da sua vida por muitos dias.
Os moradores do vilarejo italiano, como em todos os outros vilarejos, eram influenciados pelo pároco, obedientes ao Estado e sobretudo à Igreja; sua grande maioria era composta de analfabetos. Menocchio fugia a estes padrões. Embora fosse um sujeito pobre, ele sabia ler, escrevia (sem muita habilidade com a caligrafia), executava cálculos matemáticos simples e possuía conhecimento básico de latim a partir dos cantos e rezas nas missas de que tomava parte. Teve acesso a livros condenados, livros emprestados e livros comprados com suas poucas moedas. Leu críticas e elogios à Igreja. E finalmente elaborou suas próprias ideias e conclusões. Embora fosse respeitado em sua comunidade, não tinha a quem falar e expor seus pensamentos.
Provavelmente o leitor irá se solidarizar com a solidão do protagonista. O seu desejo de falar e a sua paixão pelas ideias era maior do que o desejo pela sua própria vida. Mas falar a quem em Montereale? Em sua aldeia de analfabetos e trabalhadores do campo, endurecidos pela faina diária e ocupados em conquistar a refeição do dia seguinte, ninguém perdia tempo em escutá-lo ou no mínimo em tentar compreender suas ideias.
Essa angustiante impossibilidade de expressão, fazia com que os fervilhantes pensamentos em sua cabeça dessem ainda mais voltas para reconstruir conexões tão duvidosas quanto destemidas. E assim, Domenico começou a expor suas teorias por onde passava, para quem quisesse (ou não) ouvi-las. Nas tabernas, nos campos, em seu moinho, na praça e nas feiras. Suas palavras chegaram aos representantes religiosos locais e, na sequência, aos altos escalões da Igreja. Até que por fim foi denunciado ao Santo Ofício por pronunciar palavras heréticas.
Ainda que enfrentar a Inquisição não fosse, sabidamente uma tarefa fácil, Domenico afirmou-se desejoso e pronto a declarar suas “opiniões” sobre a fé às autoridades religiosas. Por décadas almejou conversar com alguém com mais conhecimento do que seus analfabetos conterrâneos. Assim, o tribunal, a princípio, lhe causou mais satisfação do que temor.
“(...) falaria tanto que iria surpreender; e disse que se me fosse permitida a graça de falar diante do papa, de um rei ou príncipe que me ouvisse, diria muitas coisas e, se depois me matassem, não me incomodaria”. (p.40)
Então, em seu primeiro interrogatório falou por muitas horas. Criticou a utilização do latim nos tribunais, como uma opressão dos ricos aos pobre: “Na minha opinião falar latim é uma traição aos pobres. Nas discussões os homens pobres não sabem o que se está dizendo e são enganados.” Expôs a exploração dos pobres pela Igreja: “E me parece que na nossa lei o papa, os cardeais, os padres são tão grandes e ricos, que tudo pertence à Igreja e aos padres. Eles arruínam os pobres.”, Reclamou da venda de indulgências. Refutou os sacramentos da confissão, do batismo e da crisma “(…) criações dos homens para controlar homens (…)”. Questionou a virgindade de Maria. Suas declarações deixaram os inquisidores incrédulos, fascinados, espantados e com ódio. O julgamento de Menocchio não despertou a atenção da Igreja por acaso e, por conseguinte, foi vastamente detalhado nos registros históricos.
A partir daí o leitor pode inferir a sequência dos acontecimentos que tiveram desfecho semelhante ao famoso julgamento e condenação de Giordano Bruno, ocorrido no mesmo ano de 1600.
Ao nos despedirmos de Domenico Scandella, compreendemos, na cuidadosa narrativa de Ginzburg, o seu papel de mártir da palavra: “(...) às vezes a pior tortura é ter a voz silenciada”(p.198)



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