PASSADO E PRESENTE ATRAVESSADOS PELA LENDA. O colecionador de desejos - Mia Sheridan (audiolivro)
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SHERIDAN, Mia. O colecionador de desejos – uma fascinante história de amor. Tradução: Michele Jimenez. Narração: Aline Macedo. São Paulo: Editora Universo dos Livros, 2020. Audiolivro disponível em: www.ubook.com .
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José Fernandes Castigo
As tecnologias digitais de informação e comunicação (TDIC) trouxeram um novo conceito de vida, ou seja, uma nova forma de ser, estar e fazer que impactam diariamente as nossas vidas. Nesse sentido, uma das grandes mudanças ou transformações tem a ver com nosso modo de manuseio, leitura e escrita, em decorrência do advento de suportes eletrônicos para textos e livros – a tela e áudio (CD-ROM, Kindle, smarthphone, Tablet, entre outros), completamente diferentes dos livros que têm como suporte o papel.
Após o jantar, a minha “corrida” era para encontrar um lugar perto da fogueira. Pouco importava, se estava sentado na cadeira, em um tronco, em uma pedra ou pedregulho, no saco roto de sisal ou no chão, pois o que interessava era ouvir fantásticas e maravilhosas histórias. Os narradores não eram os mesmos, desde minha mãe, passando pelo meu pai, minhas irmãs mais velhas e até mesmo um primo que estivesse de visita. Vezes algumas, alguns amigos e vizinhos também narravam. Foi dessa maneira que passei inúmeras noites da minha infância. Enquanto eram narradas as peripécias, a batata-doce, o amendoim, a mandioca ou maçaroca assava ou cozia ao lume de lenha.
As narrativas eram principalmente fábulas, lendas e mitos, acompanhados quase sempre de uma pausa para uma canção ou uma pergunta. As noites de lua de cheia eram sempre as mais agradáveis. Por que razão? Sinceramente, eu também desconheço.
Da minha experiência com a leitura do audiolivro, irei adentrar no final do presente texto. Já agora, darei apenas uma pincelada. Essa leitura despertou em mim sentimentos nostálgicos, ou seja, fez-me relembrar a infância, pois essa prática de ouvir alguém narrando histórias fez parte do meu cotidiano. Por isso mesmo, mexeu com minhas emoções, ou seja, minha subjetividade, levando-me algumas vezes a interromper a leitura-audição, pois lembrava-me dos momentos que passei junto dos meus pais e familiares, sentia-me de volta às origens, ao meu passado, aos ensinamentos que os textos orais transmitiam.
Mia Sheridan é uma escritora natural dos Estados Unidos de América. É casada e tem quatro filhos. Os seus primeiros passos no mundo literário foram dados com intuito de superar uma fatalidade, ou seja, curar a dor da perda de sua filha. Escreve de forma muito viva e intensa, aborda temas que impactam a vida dos leitores, contribuindo para que eles possam viver com muita alegria, paz e amor. Gosta de ler (quase) todos os tipos de livros.
O colecionador de desejos – uma fascinante história de amor começou como um conto, foi escrito e engavetado em 2016. Entretanto, devido a insistência de seu marido, foi transformado em um romance e publicado no presente ano. É um romance muito vivo e com uma escrita marcada por descrições maravilhosas dos elementos da natureza e momentos vividos pelos personagens protagonistas. As duas histórias ocorrem paralelamente, e com uma dinâmica que prende o leitor-ouvinte, pois o fim de um capítulo deixa sempre suspense, ou melhor, aquele gostinho ou sensação de querer mais. Com relação à estrutura, para além de prólogo, epílogo e agradecimentos, é constituído por trinta e oito capítulos – o mais longo tem 43 minutos e mais curto tem 1 minuto. A obra narra duas histórias de amor, que ocorrem na cidade de Nova Orleães, EUA, em tempos distintos – a primeira entre os anos1860-1891 (período de escravidão, véspera da Guerra da Secessão), tendo como personagens protagonistas, Angelina, filha bastarda de Senhor Chamberlain com uma escrava negra, e John Wildfield soldado que lutou pela não abolição da escravatura. A segunda história tem como protagonistas Clara Campbell e Jonah Chamberlain, e ocorreu nos dias atuais. Esse romance destaca sobretudo amor e rejeição; tristeza e triunfo; e, solidão e afeto. Também aborda as questões de escravatura e racismo, especificamente a guerra entre norte e sul e as plantações de cana-de-açúcar nos Estados Unidos.
Angelina e John viveram uma intensa história de amor e, por pertencerem a “mundos diferentes”, a relação dos dois teve um fim trágico. Mais tarde, ou seja, 150 anos depois do sucedido, essa história virou uma lenda em Nova Orleães porque os residentes acreditavam que os espíritos de Angelina e John deambulavam pela fazenda Windisle. Foi essa lenda que uniu os corações de Clara e Jonah. Clara, uma bailarina, filha única de um motorista, que sofria de doença degenerativa, Mal de Alzheimer, vai para Nova Orleães com o intuito de estudar ballet e turbinar a sua carreira artística. E em uma das conversas com sua vizinha tomou conhecimento da existência de “muro que chora”, relacionado à lenda de história de amor entre Angelina e John. Com objetivo de conhecer o “muro que chora”, Clara vai na fazenda Windisle, abandonada para maioria dos residentes da cidade e ali descobre um morador, Jonah, um advogado que, após um trágico acontecimento ocorrido na porta de tribunal, que deixou o seu rosto desfigurado, decidiu isolar-se e levar uma vida solitária durante 8 anos, passando a coletar os desejos das pessoas, depositados no “muro que chora”, e foi assim que encontrou o desejo de Clara. Esse encontro através do muro ficou marcado por uma breve conversa que fez nascer uma ligação forte e fora de comum – por um lado o desejo e obsessão de solucionar o mistério por detrás da lenda e por outro, o amor que crescia entre eles dia após dia.
O romance tem um narrador omnisciente, pois conhece tudo sobre os personagens, seus pensamentos, suas emoções, seus desejos, e mais. Os personagens vivem as suas histórias de amor com muita intensidade e paixão. Através de elementos ou categorias da narrativa, recursos estilísticos, com maior destaque para personificação, exagero e metáfora, e elementos da natureza, o narrador descreve a história com grande dinamismo e de forma fantástica, evidenciando espaços, alguns momentos vivenciados pelos personagens, marcas do uso das tecnologias digitais, escravatura e racismo:
Clara pegou o celular, pesquisou fazenda Windisle e encontrou o endereço com facilidade, minutos depois um Uber parou perto do meio fio e ela embarcou rumo ao muro que chora, vinte minutos depois saiu do carro. Agora uma leve brisa soprava e o ar em movimento era delicioso em sua pele quente. Clara suspirou alegre inalando os cheiros doces e sazonados do verão e apreciando a diminuição do calor sufocante das últimas semanas. Acima dela o céu exibia vários tons de cinza, as nuvens em volta por um brilho prateado, um bando de pássaro passou depressa pela nevoa cintilante, um deles saindo da formação e seguindo isolado por uma fração de segundo antes que restante do grupo retornasse para se unir ao membro desgarrado, completando a formação mais uma vez... [...] Clara sentiu-se totalmente arrasada ao se dar conta de todo o sentimento angustiante não apenas de Angelina mas também dos escravos que tinham vivido ali, que tinham estado tão perto do local onde ela se encontrava. Ela se perguntou se o sangue e o suor deles ainda estavam misturados aos solos dos campos de cana-de-açúcar cobertos de ervas daninhas e sentiu tanta tristeza que achou que fosse chorar. (capítulo 2)
Sim uma estrela, ela respondeu hesitante, então olhou para cima e observou as estrelas espalhadas feitos diamantes, sobre o veludo negro do céu noturno, há tantas delas que dificilmente alguém daria por falta de algumas. Angelina deixou escapar uma risadinha e se afastou do belo soldado. O coração dela batia como se fosse saltar do peito. Angelina estava acostumada a falar com gente branca. Ela se sentava no joelho do pai e ele contava histórias desde pequena e frequentemente brincava com seu meio irmão e com uma de suas meias irmãs, mas aquela era a primeira vez que conversava por mais de um minuto ou dois com um branco que não fosse de sua família, e ela estava apreensiva. [...] nunca alguém lhe estendera a mão antes. (capítulo 3).
Como me referi no início deste texto, a minha experiência com a leitura de audiolivro foi maravilhosa e prazerosa. Primeiro pelo fato de que boa parte da minha infância ouvi mais histórias (do que li textos impressos) e isso me pareceu familiar. Segundo, pela linda história, excelente tradução e narração. Por último, podia ouvir o áudio em qualquer lugar e até mesmo praticando outras atividades, como: cozinhar, lavar roupas ou pratos, caminhar, etc.
A narração foi fantástica, pois a narradora tem uma linda voz e soube conectar entonação com as falas dos personagens. Apesar de fortes emoções sentidas quando da leitura, ela fluiu com muita velocidade o que me levou a terminar rapidamente e já ter começado a leitura-audição de um outro romance.



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