SOBRE O AMOR E A MISÉRIA. Uma criatura dócil - Fiódor Dostoiévsky (audiolivro)

 DOSTOIÉVSKY, Fiódor. Uma criatura dócil2ª ed. Intérprete: Carlos Eduardo Valente. São Paulo: Cosac Naify, 2009. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=KG36kY6zDe0 

                                                                                                                                                                                                                               Telma Rubiane Rodrigues de Melo

      

Uma narrativa intensa sobre flagelo e punição, sobre autoengano e autodescoberta. É a história de um desencontro, de um relacionamento sonhado e não realizado, porque quando um finalmente chegou, o outro já não estava. É uma história sobre o tempo de cada um. Assim é Uma Criatura Dócil, de Fiódor Dostoiévski, novela densa escrita em 1839, que, na voz potente de Carlos Eduardo Valente, ator gaúcho, especialista em narração de audiolivros, torna-se ainda mais envolvente. 

Pelas palavras que o autor registra, e que o ator evoca, o ouvinte conhece a narrativa pelo seu fim: há um cadáver de uma jovem sobre a mesa, e o homem solitário na saleta fria é quem conta sua história, a história dos dois, a história dele. O narrador vai se apresentando aos poucos, tanto pelo que ele diz, como pelo que ele não diz (ah… os silêncios, esses subterfúgios secretos em que o ser humano se resvala para escapar daquilo que é indizível…): homem maduro, dono de uma casa de penhores, de situação financeira confortável, orgulhoso de sua posição, viúvo há poucas horas — é o que ele nos conta, entre pausas e gemidos, titubeante, sem certeza das palavras que diz (e todo esse medo e insegurança nos chega pela brilhante interpretação de Valente).  O narrador é agora apenas um vislumbre do que foi, ou o que pensava ser antes de amá-la...           

E então, em uma mudança de  tom de voz, o ouvinte é conduzido até as ruas frias de Moscou, onde pode sentir o vento gélido cortar sua pele enquanto vê uma menina franzina ir a passos lentos e indecisos até a casa de penhores. Ela, a criatura dócil. O ouvinte observa a figura loira e magra que se coloca em frente ao balcão, a fala sussurrada, o olhar acuado, os movimentos pequenos, como se pedisse desculpas por existir. Em suas mãos frágeis, delicadas, pedintes, ela traz objetos tão humildes quanto ela mesma, e sua penhora é como uma súplica. Da segunda vez que vem, o interlocutor já pressente o que a pobre garota tem a penhorar: é a si mesma. E assim é. 

Aos poucos, na narração de Valente, o narrador é despido, camada por camada, diante  de nossos ouvidos, até ficar completamente nu em sua miserável existência: ele é cruel, tem sentimentos vis, é vingativo. A menina, que de cliente vira esposa, é como uma flor que murcha antes mesmo de desabrochar, diante de tanta secura, pois não há beleza que resista ao desamor. O interlocutor, então, é colocado ali como um juiz, perante um homem que se sabe culpado da desgraça que o acometeu, mas que refaz os caminhos que o levaram até o inferno da culpa em uma tentativa de se autoflagelar, mas também de encontrar a redenção. Ele pede perdão, não mais para a esposa, que não pode ouvi-lo, mas para si mesmo e para o leitor, na esperança de ter sua pena atenuada. 

Durante as cerca de duas horas da novela, não existe nenhuma opção de realidade para o ouvinte que não seja a atmosfera cruelmente fria da Rússia do século XIX. Essa é a experiência que este audiolivro oferece: uma realidade paralela, em que o leitor se transforma naquele com quem o narrador compartilha sua loucura, seus delírios; na vizinha que observa o ir e vir da menina órfã que se transforma em esposa, como fuga para a vida deplorável que tinha; na criada que acompanha a mudança progressiva da garota frente à impassibilidade de seu redentor, comprometido que estava em não se entregar, como se o amor fosse uma espécie de fraqueza.  Da mesma forma, o leitor ainda está ali, quando as transformações começam a ocorrer com o narrador, que de sua profunda avareza e altivez, vai se dobrando aos poucos, sem que ele mesmo percebesse, até encontrar os pés da jovem esposa, já absorta em seus próprios sonhos, como a neve que vai cedendo aos raios de primavera. E então o leitor vê o desastre, que já se delineava no horizonte.

Temos aqui um texto genial, em uma narração perturbadora, para a qual o interlocutor é inteiramente absorvido, e do qual só consegue se afastar muito além das duas horas de história. Valente é capaz de agregar a uma obra já brilhante, nuances e cores dramáticas que a tornam ainda mais viva para o leitor, representando com grandiosidade a complexidade desse personagem. Além disso, com sua interpretação versátil, constrói com nuances as demais figuras da narrativa, apresentadas pelo olhar confuso e parcial do narrador, de modo que haja espaço para que o leitor não se sujeite à enganação e faça ele mesmo seu julgamento. Este audiolivro promove, assim, uma experiência sinestésica, de imersão, a ponto de que seguimos com os personagens na experiência deles, como se eles ainda caminhassem pelas mesmas ruas frias em que os conhecemos. Enfim, uma experiência fascinante, e terrivelmente sedutora. 


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