A perversidade do racismo


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TENÓRIO, Jeferson. O avesso da pele. São Paulo: Companhia das letras, 2020.

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Rachel Ferreira Oliveira Santos

Faculdade de Educação - Unicamp




                “É necessário preservar o avesso, você me disse. Preservar aquilo que ninguém vê. Porque   não demora muito a cor da pele atravessa nosso corpo e determina nosso modo de estar no mundo.” (p. 61)

Nascido no Rio de Janeiro em 1977 e radicado em Porto Alegre, Jeferson Tenório estreou na literatura com o romance O beijo na parede (2013), eleito o Livro do Ano pela Associação Gaúcha de Escritores. Seus textos foram adaptados para o teatro e traduzidos para o inglês e o espanhol. Escreveu também Estela sem Deus (2018). Seu primeiro livro com a editora Companhia das Letras foi Avesso da pele, publicado em 2020 e vencedor do prêmio Jabuti de 2021.

O livro é dividido em quatro partes: “A pele”, “O avesso”, “De volta a São Petersburgo” e “A barca”.

A obra é narrada pelo filho da personagem principal, que parece contar a história do/para o pai ausente, recém falecido, revelando como o via, entendia e sentia - sensações que surgiram quando o narrador precisa se desfazer das coisas do apartamento do pai: “Hoje, prefiro pensar que você partiu, para regressar a mim” (p.13).

Conhecemos na primeira parte, “A pele”, o pai do narrador, Henrique, um professor de Língua Portuguesa e Literatura de escola pública, em uma região periférica da cidade de Porto Alegre. Neste ponto percebe-se uma tendência à autobiografia, uma vez que o autor do romance é igualmente um professor. O narrador relata a origem sofrida do pai “[...] aos vinte e um anos, parou na frente do espelho e entendeu que a vida era caótica e não fazia nenhum sentido” (p.16); fala da juventude do pai em que “ser confundido com bandido vai fazer parte da sua trajetória” (p.19); dos relacionamentos, do primeiro emprego. Conta ainda como Henrique tomou consciência da sua negritude, com a ajuda do professor Oliveira.

A segunda parte, “O avesso”, traz lembranças da infância e juventude da mãe do narrador Pedro, do relacionamento conturbado de seus pais e da sua infância. Com o recurso do discurso indireto livre, o narrador vai intercalando os tempos da narrativa. Ora trata do presente, ora fala de sua infância e da infância de seus pais. Várias personagens aparecem nesta parte, variando em maior importância (Martinha, mãe do Narrador, Madalena, Flora, Vitinho, Saharianne) ou menor importância (Rubão, Jane, Reinaldo).

Nesse ponto da história Pedro fala da maneira como ele e sua mãe perceberam-se pessoas negras e informa ainda as visões diferentes dos pais em relação ao racismo; a mãe acreditava que falar sobre o tema, sobre a cor da pele, só fortalecia o racismo e o preconceito. Enquanto para o pai, existia um racismo estrutural que precisava ser discutido, questionado e combatido. A mãe defende também que “os negros são diferentes. Nós não somos iguais.” (p.76), uma vez que, segundo ela, o racismo contra um homem negro e uma mulher negra, por exemplo, é muito diferente.

Um tema importante que, entre outros aspectos, pode justificar o convite à leitura do livro é a reflexão sobre os estereótipos vivenciados pelos negros, como a sua força, ausência de dor física, sexualidade exacerbada, além da crença que todo menino negro ou tem fome ou tem problemas com droga. O narrador enfatiza o fato de os negros terem que sempre se provarem melhor a fim de lutar contra a inferiorização, o que os levam “a não sabe[r] avaliar [seu] fracasso. Porque é tentador atribuir todas a [suas] fraquezas e as [suas] falhas ao racismo” (p.85) e completa “[...] sobrará sempre aquela dúvida das nossas reais capacidades. E essa é a perversidade do racismo”. (p.86)

A terceira parte da obra, “De volta a São Petersburgo”, descreve principalmente a trajetória profissional do pai “você não sabe como sobreviveu à escola primeiro como aluno, depois como professor” (p. 129). O narrador descreve de maneira muito simples e potente as agruras da escola, mostrando como a precariedade do ambiente escolar transformou seu pai em um indiferente, após anos de magistério, “com o passar do tempo o desencanto tomou conta da sua vida” (p.132), mas ainda assim o pai não desistira.

É nesse ponto que o narrador relata as várias abordagens policiais sofridas pelo seu pai, as quais começaram na infância e perduraram pela vida e que só ao longo do tempo o pai percebera que era devido à cor de sua pele.

A parte final, “A barca” — referência ao apelido dado à viatura policial —, relata a morte da personagem principal Henrique, sobre a qual não vou comentar, a fim de despertar o interesse de leitores sobre o fim dessa personagem tão simples e profunda e o desfecho dessa narrativa tão contundente sobre o preconceito racial no país.

Dentre as razões pelas quais eu recomendo a leitura do livro está o fato de o romance tratar de um tema tão sério e complexo - o racismo no país - de maneira muito simples e fácil de acompanhar e, ao mesmo tempo, com profundidade, complexidade e riqueza de detalhes. O autor, ao criar um narrador que busca entender o sentido da sua vida “precisei juntar os pedaços e inventar uma história [...] eu sei que a história pode estar apenas na minha cabeça, mas é ela que me salva” (p. 183), reconstitui a história dos pais, principalmente do seu genitor. Essa busca permite ao autor construir personagens complexas, verossímeis, pelas quais sentimos uma empatia instantânea. A narrativa é em primeira pessoa, mas as vezes aparenta ser em uma segunda pessoa, como se fosse um diálogo do filho com o pai ausente. O enredo é construído a partir de situações cotidianas, com pessoas comuns, que podemos encontrar em qualquer local. É uma narrativa que consegue prender a atenção do leitor facilmente. O romance se aproxima do gênero crônica, ao relatar o cotidiano, sem acontecimentos extraordinários, apenas o dia a dia dos personagens acontecendo.

O livro pode ser um grande aliado para quem quer refletir sobre o racismo estrutural que perpassa a história do nosso país, principalmente a do sul do Brasil. O romance nos faz questionar como as pessoas que sofrem o preconceito veem o racismo, como são afetados de maneiras diferentes, ao construir com muita sensibilidade personagens que ressaltam as diferenças, as diversas identidades dos sujeitos, o que pode ser percebido na fala de uma das personagens “o que você tem que entender é que os homens negros sofrem suas violências. E que as mulheres negras sofrem outras. Algumas são parecidas. Mas veja somos diferentes. Nem sempre as causas são iguais”. (p.182)



Referência

Jeferson Tenório. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/autores/1239-jeferson-tenorio. Acesso em: 08/05/2027.

Comentários

  1. Beleza, Rachel. Divulgue nas suas redes sociais fambém

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  2. Excelentes reflexões sobre a obra!

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  3. Parabéns pela análise e detalhes passados sobre a obra, muito claro e com uma leitura muito gostosa essa análise.

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  4. Síntese que apresenta clareza, riqueza de dados e que dá ao leitor um contexto geral sobre esse tema tão delicado e necessário nos dias atuais.
    É um convite a leitura, um mergulho na perpectiva de um sofredor(es) , como tantos que se passam despercebidos no nosso dia a dia. Parabéns Rachel!

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  5. Muito obrigada pelo relato minucioso, Rachel! Fiquei muito curiosa e interessada para ler a obra toda, principalmente por se tratar de uma temática como o racismo que, lamentavelmente, ainda não foi erradicado da nossa sociedade.

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  6. Rachel, já o acrescentei na minha lista "livros para comprar". Pelo que entendi da sua resenha, é uma obra importante para ser conversada com alunos, professores, amigos e familiares. Obrigada pela dica.

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  7. Emocionei com sua resenha Raquel, imagino com quão profunda é a narrativa. Uma ótima pedida para aqueles que desejam se colocar ao ponto de vista dos que sofrem o racismo.

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  8. Flavia é uma narrativa transformadora e necessária.

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  9. Um tema muito necessário para reflexão. Já está na minha lista de obras para leitura. Parabéns, Rachel!

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  10. Que leitura maravilhosa! Fiquei interessada em conhecer a obra pelo conjunto completo: temática, narrativa, personagens!

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