O PODER DA PALAVRA ILIMITADA

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DALCHER, Christina. Vox. São Paulo: Arqueiro. 2018. Trad. Alves Calado. 320 p.

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Isis Parise Silva
Faculdade de Educação - Unicamp

    De quantas palavras seria preciso abrir mão para tecer a mais sublime declaração de amor? Com quantas palavras mais de uma centena de conflitos já foram deflagrados? Qual será o número mínimo de palavras necessárias para defender seu direito de existir? Será possível limitar a liberdade de proferir nossos descontentamentos e alegrias? Que danos isso causaria?

    Acreditei que seria interessante tentar esse exercício narrativo e me prender ao limite de 100 palavras para dizer um pouco sobre o romance que me propus a ler, mas antes mesmo de colocar meu plano em ação já me sentia um pouco como a Jean: senti raiva dessa imposição que iria cercear não só minha liberdade de dizer, mas minha liberdade de pensar e comecei a me indignar comigo mesma. Fiquei descrente de quanta bobagem pode ser dita quando a opressão se disfarça de opinião e todos os questionamentos e questionadores não veem caminho viável senão emudecer - ou quando eles são simplesmente calados, no caso dessa distopia insanamente possível.

    Christina Dalcher, mulher, escritora, linguista e professora universitária, com doutorado pela Universidade de Georgetown, tem, no ano de 2018, Vox como seu romance de estreia. Nessa ficção, a presidência dos Estados Unidos da América está sendo governada - através de eleições democráticas, diga-se de passagem - por um grupo muito seleto de homens que integram o que se chama Movimento Puro. Políticos, religiosos e outras tantas categorias de pessoas que acreditam no restabelecimento da ordem do país através da conformação moral da família e principalmente das mulheres. Essas passariam a viver sua “melhor versão” como boas e silenciosas donas de casa e parideiras.

    Jean, a narradora-protagonista, nos conta o que tem acontecido durante esse primeiro ano no qual os Puros assumiram o poder, prenderam contadores de palavras no pulso de cada mulher, reorganizaram as famílias e afastaram os impuros do convívio social. A história transcorre no período de uma semana e nos aproxima do passado e do presente dessa mulher que é uma das heroínas mais humanas que já tive o prazer de ler. Ela nos lembra constantemente das coisas que lhe foram tiradas ao tirarem sua voz e dentre elas está seu trabalho e o seu direito de esbravejar com toda força do ódio e da indignação que corre pelo seu corpo. Ela não é perfeita e esse já é motivo suficiente para conhecê-la.

    Uma pesquisadora competente no campo da neurolinguística, Jean reavalia seu (não) posicionamento político em diversas situações anteriores, quando deu mais atenção à sua pesquisa do que à conhecer as leis de seu país ou participar do processo eleitoral. Ela lembra que é impossível ser neutro quando vivemos em sociedade, lembra que podemos até não ter o tipo de disposição política de participar de manifestações, passeatas e greves, mas independente do lugar que ocupamos, sempre estaremos exercendo algum tipo de posicionamento e a partir do momento que perdemos nossa consciência política dentro daquilo que realizamos ou da vida que levamos já perdemos nossa voz, perdemos nossa direção e deixamos que palavras alheias nos governem.

    Vale ressaltar as semelhanças com outra narradora, distante no tempo, mas não em seu poder reflexivo: Offred, narradora-protagonista do Conto da Aia, romance de 1985, escrito por Margaret Atwood. Ambas vivem no limite entre a transformação do presente e a recordação do passado, quando a liberdade feminina parecia ter sido solidamente conquistada, mas só parecia.

    A narrativa é repleta de outras camadas, capaz de suscitar longos, deliciosos e infindáveis debates. Com essa voz, herdada do brado das mulheres que vieram antes de mim, te convido a ler e experimentar o poder da palavra ilimitada.

Comentários

  1. Excelente comentário - o livro me pareceu ser mais do que pertinente. Parabéns!

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  2. Ísis, eu já tinha ficado bastante curiosa com esta obra só pelas coisas que você contou na sala de aula. Agora, diante da resenha, vejo que existem muitas histórias e possibilidades de conversa e reflexão. Obrigada pela dica

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  3. Posicionar-se diante da realidade política é ser comprometido com a sociedade. Trazer essa reflexão diante de uma narrativa promissora me parece super empolgante. Pensei inclusive em abordar o tema na perspectiva do protagonismo estudantil político.

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  4. Isis, com a sua excelente apresentação dessa obra fica impossível não despertar o interesse pela leitura do livro. Estou curiosíssima.

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  5. Isis, adorei seu comentário! Você conseguiu apresentar seu posicionamento diante de um tema que tanto nos desperta indignação (o silenciamento de mulheres) ao mesmo tempo em que nos aguça a curiosidade para ler essa obra. Já adicionei o livro na minha lista de próximas leituras.

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  6. Gostei do comentário e atiçou a minha curiosidade. Que crueldade viver em uma sociedade como essa. Boa reflexão.

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