O vento sabe meu nome
ALLENDE, Isabel. O vento sabe meu nome. Tradução de Ivone Benedetti. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 2024. 221p.
Maria Auxiliadora de Freitas Bastos Matias
Faculdade de Educação - Unicamp
Esperançar. Como esperançar em meio ao
tenebroso? Como a criança, na sua infinita inocência, pode ser capaz de
munir-se de tamanha resiliência em meio ao caos? Generalizando, por que o ser
humano, à medida que amadurece, permite que o sonho ceda espaço para o real?
Será que a ignorância acalenta a alma?
O 27º livro de Isabel Allende, que chegou
ao Brasil em 2023 pela editora Bertrand Brasil, inicia a sua narrativa em
Viena, 1938, apresentando uma família de judeus: a professora de piano Rachel,
o médico Rudolf e o filho do casal, Samuel Adler, de apenas 5 anos de idade.
As primeiras páginas do romance relatam a
Noite dos Cristais, um real massacre que ocorreu instigado pelos nazistas
contra os judeus em muitas cidades na Áustria, na Alemanha e na antiga Tchecoslováquia.
O horror foi assim intitulado em razão dos inúmeros cacos de vidro que cobriram
as vias públicas após o ataque violento dos dias 09 e 10 de novembro. Noventa e
um judeus foram brutalmente assassinados e centenas de suas casas, sinagogas e
comércios foram destruídos por civis.
A
partir daquela horrenda noite, Rachel, com o marido deportado para um campo de
concentração, entendeu que os judeus eram considerados pelos nazistas como um
“tumor maligno que precisa ser extirpado da nação” (p. 18) e que era necessário
exilar-se em outro país com a sua família. Iniciou-se, então, um processo de
visto demorado e rodeado de muita enganação, embora Rachel se dispusesse a
atitudes que fossem contra os seus princípios e valores. Convencida pelo amigo
Volker e por sua atual circunstância, Rachel se viu agarrada a uma única
possibilidade de salvar o seu filho: usufruir da vaga que conseguira no
Kindertransport (uma ajuda humanitária que salvou mais de 10 mil crianças
judias enviando-as para a Inglaterra no período da II Guerra Mundial).
A obra não dá detalhes sobre essa ajuda
humanitária que realmente aconteceu. Mas há inúmeros textos e documentários que
relatam o movimento Kindertransport (um dos mais expressivos na história). Em
especial, recomenda-se o estreado e vencedor do Óscar de melhor documentário no
ano de 2.000: Into the arms of strangers
(Nos braços de estranhos). Sob o roteiro e a direção de Mark Jonathan Harris, o
documentário apresenta o ato humanitário pelos olhos das crianças (já em idade
avançada) que se beneficiaram desse amparo.
Não há como não se debulhar em lágrimas
ao ler a despedida da mãe de seu pequenino filho Samuel. No trecho, a autora
permite ao leitor experenciar a dor/amor maternal, a entender que o amor
maternal é mais forte do que o seu respirar. Naquelas linhas, todos alcançam
juntos o auge do amor e do desespero na tentativa de salvar o menino. É como se
todos os leitores se sentissem solidários à Rachel.
“Ajoelhada no chão, Rachel estreitou o
filho nos braços, incapaz de reter as lágrimas e, murmurando instruções e
promessas que não podia cumprir, disse: Até logo meu amor, não se esqueça de
tomar o leite e de escovar os dentes antes de dormir. Não coma muitos doces.
Seja respeitoso com as pessoas que vão te receber, não se esqueça de dizer
obrigado. A gente vai se ver logo, assim que teu pai voltar, vamos nos reunir
com você, vamos levar a tia Leah e talvez o vovô, a Inglaterra é um país muito
lindo, você vai viver muito bem. Te amo muito, muito...” (p. 38).
É possível sentir a voz embargada de
Rachel durante a curta despedida. É possível guardar, junto com ela, as
sombrias incertezas dos próximos dias. É possível engolir a sua dor e tentar,
desesperadamente, esconder-se na paz daquele ingênuo abraço do seu doce
violinista. É possível ouvir o eco do “te amo muito, muito...”.
Definitivamente, Rachel portou-se de um sacrifício que ultrapassou a morte.
Concomitantemente à história da vida de Samuel,
Isabel Allende traz tantas outras histórias que se pode considerar natural se o
leitor tardar alguns parágrafos para conseguir segmentar os enredos. Ao longo
dos capítulos, é possível compreender que aqueles personagens carregados de
contextos em tempos e espaços tão distintos são, na verdade, conteúdo para que
o leitor adquira repertório e consiga unificar os laços entrecruzados de Samuel
Adler e Anita Díaz, dois personagens unidos pela orfandade e pelo estigma de
refugiados.
A deficiente visual Anita Díaz, embora seja
efetivamente apresentada na página 77, é implicitamente citada desde a página
49. É como se a autora preparasse o leitor para conhecer e acolher a doce
menina de 7 anos de idade.
O
vento sabe meu nome é um romance que mescla realidade e sonho. Violências e
redenções são pautadas em fatos historicamente verídicos. Além da Noite dos
Cristais e do Kindertransport, a obra revisita horrendas memórias sobre o
massacre El Mozote e sobre a pandemia
provocada pela Covid-19, mas reconhece e valoriza ações humanitárias como o
Projeto Magnólia. É como se Isabel Allende explanasse a existência do bem e do
mal na sociedade. A escritora mais lida em língua espanhola no mundo enuncia
que o ser humano é capaz de ressignificar e se entreajudar, em meio aos
acontecimentos mais hediondos que possam existir.
Vale ressaltar que a obra não julga as
famílias que empurram os seus filhos para o abismo do desconhecido. Ao
contrário, o romance é solidário especialmente às mães, que se veem na
necessidade de sacrificar o seu próprio querer e deportar os seus filhos para o
nada, na esperança de que isso seja o tudo.
“Sua cliente é Anita Díaz... foi separada
de Marisol Díaz, sua mãe, no fim de outubro. Está há oito semanas num
refúgio...” (p. 77) “Há centenas de menores no limo, como Anita, porque não
conseguem encontrar os pais... A maioria provinha da Guatemala, El Salvador e
Honduras, o infame Triângulo Norte, uma das regiões mais perigosas do mundo,
onde a pobreza mata devagar, a violência doméstica mata as mulheres, as
quadrilhas, os narcotraficantes e o crime organizado matam com violência e os
governos corruptos matam com impunidade. Não era estranho que alguns refugiados
preferissem não voltar a ver os filhos em vez de recebê-los de volta, porque
por algum motivo tinham fugido. Acreditavam que, por mais dura que fosse a
burocracia americana, era melhor que o terror em seu país” (p. 81).
A maternidade traz na alma uma coleção de
sonhos e expectativas. Chega a ser inimaginável cogitar a possibilidade do
rompimento do cordão entre uma mãe e o seu filho de modo brusco e precoce. Mais
inconcebível ainda é pensar que esse desligar pode acontecer por motivos
políticos e/ou sociais.
A obra traz como tema central a política
migratória, a situação de pessoas que se posicionam como refugiadas na
sociedade por questão de sobrevivência e busca por dignidade. Nesse contexto, a
autora apresenta o cair da noite para as famílias Adler e Díaz e nele os sonhos
derrubados pelo pavor e as expectativas embebidas de desesperanças.
A narrativa iniciada em 1938 ganha
movimento por longos 84 anos quando Samuel, já idoso, conhece, entende e acolhe
(com empatia) as dores de Anita. Ela, ainda menina, ensina-o o valor do
otimismo nos dias sofridos e como preencher os vazios internos: “Eu também
quero voltar para a casa da Tita Edu, quero que tudo seja como antes... mas não
podemos ter tudo que queremos nesta vida... Quando você tiver vontade de
chorar... precisa fazer que nem eu, precisa pensar em coisas bonitas... Já te
falei de Azabahar... Não é o céu, é melhor que o céu, porque não precisa morrer
pra ir lá... A gente prometeu que ia ser valente” (p. 88-89).
Foi pelos olhos de Anita que Samuel
revisitou o seu passado sombrio de modo curador: “Em Samuel, a menina provocou
um tsunami de lembranças dolorosas; ele sentiu o coração se abrir” (p. 182) “A
memória daquele tempo era mais vívida que o presente, por isso ele sentia
infinita compaixão de Anita, que estava passando pela mesma situação” (p. 187)
“Samuel se maravilhava com a menina. Ele nunca tinha vivido num mundo
imaginário, desde muito pequeno aterrissara na realidade, mas ela, que havia
sofrido rupturas semelhantes às que sofrera, conseguia voar para uma dimensão
fantástica” (p. 192).
O
vento sabe meu nome é capaz de alterar a percepção do leitor a respeito das
pessoas refugiadas. A entender melhor o porquê elas se entregam à essa
alternativa, como a sociedade encara o problema migratório e o que se pode ser
feito para alterar essa realidade.
Sou suspeito para falar de Isabel Allende porque a tenho como minha escritora predileta. Mais uma avaliação positiva como esta não me espanta: apenas me mostra que o não estou muito errado naquilo que gosto. Que a autora do comentários leia outros romances mais de Allende e nos brinde com apreciações bem tecidas como esta aqui.
ResponderExcluirJá quero ler o livro! Amei a resenha sobre ele. Essa análise feita me parece uma leitura profunda e perspicaz da obra, reconhecendo tanto a dimensão pessoal e emocional da história. Obrigada, Dorinha, por esse olhar tão singular.
ResponderExcluirQue linda história vista sob o olhar acurado de uma querida pesquisadora. Sua resenha é um primor não só pela bela tessitura textual, mas pela demonstração de cuidado e respeito pela autora do romance. Parabéns, Dorinha!
ResponderExcluirQue texto precioso e sensível! Nos faz querer ler o livro e adentrar em cada uma das vivências dos personagens. Fico muito tocada com histórias sobre esse período histórico e o texto também nos leva a refletir sobre tudo o que essas famílias tiveram que abrir mão na busca e na esperança de garantir um futuro para seus filhos. Obrigada por compartilhar conosco!!
ResponderExcluirÉ de emocionar ler sua resenha! Que gostoso sentir o quanto o livro te tocou! Parabéns, Dorinha!
ResponderExcluirOlha, que legal! Um romance atravessado pelo tema da imigração! Interessante essa chave de leitura que você nos oferece. Senti também a forma sensível que marca sua relação com a literatura... Muito obrigada pela partilha!
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