Sonho, Dor e Esperança: as histórias de quatro presos políticos no livro Istambul Istambul.

Leandro Piazzon Corrêa
Faculdade de Educação da Unicamp

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SÖNMEZ, Burhan. Istambul Istambul. Tradução de Tânia Ganho. Rio de Janeiro: Editora Tabla, 2021. 320 p.

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Istambul Istambul é um livro instigante e desafiador. A primeira edição desta obra, do escritor turco Burhan Sönmez, foi publicada na Turquia em 2015. Sönmez vem sendo avaliado pela crítica especializada como um dos mais proeminentes escritores turcos da atualidade. A referida edição em língua portuguesa, oferecida pela Editora Tabla, é excelente oportunidade para quem não lê em língua turca, e queira conhecer o trabalho de um autor situado fora do eixo EUA – Europa. Sönmez, que escreve originalmente em sua língua materna, nos envolve com o realismo e as sutilezas literárias tão características do romance turco, como, por exemplo, também podemos notar nas obras do escritor Orhan Pamuk, primeiro escritor turco a ganhar o prêmio Nobel.

O livro está dividido em dez dias, que compreendem dez capítulos, vividos por quatro prisioneiros confinados em uma única cela subterrânea de uma prisão de torturas turca na cidade de Istambul. O estudante Demirtay, o Médico (sem nome), o barbeiro Kamo e o Tio Küheylan (um velho revolucionário), dividem suas lembranças, seus medos, dores e anseios através de histórias por eles narradas aos companheiros de cárcere.

O tempo e espaço destas histórias e o imaginário de seus narradores, transitam entre o real e o fantasioso. Flertam com uma superfície, sobre a qual viceja uma Istambul iluminada, banhada pelas águas do Bósforo, ornada pela Torre de Leandro (Torre da Donzela), agitada pelo vai e vem dos vendedores de simit, aromatizada pelos cafés e adoçada com despretensiosas doses de raki.

Por outro lado, a realidade avinagrada de uma cela escura, fria e úmida se impõe. Dor e medo. O ruído do portão de ferro. Os passos do carrasco se aproximando da cela. Com detalhes, a narrativa nos apresenta o sangue e as cicatrizes que assinam as faces destes quatro supliciados, sufocados pelo ar pestilento exalado por corpos sistematicamente flagelados.

De fato, Istambul Istambul não é uma leitura pueril, ingênua. De forma alguma Sönmez oferece uma leitura recreativa ou contemplativa. Ao contrário, os arquétipos das personagens são densos, cheios de inquietações, habilmente trabalhadas por meio de uma escrita densa, bastante descritiva, convidando-nos em cada parágrafo a fazermos profundas análises da condição humana. Neste sentido, faz lembrar de momentos narrados nos livros Coração das trevas, de Joseph Conrad, e Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago.

Porém, o livro igualmente apresenta esperança e solidariedade entre as personagens. Um afago na fronte, um pedaço de pão ou um copo d´água são singelas delicadezas que até o mais rude e embrutecido ser humano pode protagonizar. Sönmez explicita estes momentos diversas vezes ao longo da obra. As histórias se confundem em alguns momentos, se separam em outros, mas, sobretudo, são profundamente humanas.

Em poucas palavras, esta não é uma obra para leitores ansiosos. É uma obra que merece ser lida e relida, pois cada personagem é merecedora de profunda atenção do leitor atento. Como epílogo, o autor oferece um aforismo do poeta persa Mansur Al-Hallaj, no qual diz que “o inferno não é o lugar onde sofremos, é o lugar onde ninguém nos ouve sofrer”. Boa leitura!


Comentários

  1. Densa e bem amarrada essa fotografia da obra.

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  2. Muito bem elaborado o texto. Além de promover a leitura do livro, as informações apresentadas nos estimula a refletir acerca da prática da alteridade, ainda que em situações adversas. Parabéns!

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  3. Leandro, fiquei com muita vontade de ler e conhecer as histórias deste chão meio masmorra, meio portal, onde me pareceram morar o medo e o abandono, mas também a esperanca e a fantasia que permite sobreviver. Espaço do humano, das histórias que contam quem somos e nunca mais seremos (da mesma forma). Romance que parece difícil. Suas palavras fizeram chegar a atmosfera da obra. Aliás, a escolha das palavras foi muito clara e certeira e o texto ganhou com sua capacidade de síntese. Por fim, importante sua diversificada escolha de leitura - que oportunizou uma experiência de leitura noutro tempo e espaço e a partir de outra tradição. Não é pra ser fácil, mas transformador. E deu pra perceber o quanto foi. Obrigada pela partilha!

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  4. Istambul Istambul será o primeiro livro de autor turco que lerei. Embora você diga que não é um texto para ansiosos, confesso que a minha ansiedade é quem me arrasta para o início da leitura hoje mesmo!
    Enquanto lia o seu comentário, eu também fiz uma analogia à obra Ensaio sobre a cegueira, uma das minhas favoritas de Saramago.
    Obrigada pela indicação e parabéns pelo texto muito bem escrito.

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