Torto Arado - realidade nua e crua

 



Vieira Junior, Itamar. Torto Arado. São Paulo: Todavia, 2019.


Carla Mondini

Círculo Literário da Hípica

O romance é sobre a vida de duas irmãs, Bibiana e Belonísia, que, quando ainda crianças, sofrem um acidente em que cortam as suas línguas ao disputarem uma faca que encontraram escondida por sua avó. Bibiana se cura; porém, Belonísia perde a fala para o resto da vida. A trama se desenvolve no seio familiar das irmãs, de amigos e pessoas de seu convívio em razão de todos trabalharem nas terras da chamada Fazenda Água Negra, localizada na Bahia, na região da Chapada Diamantina. Essas pessoas são na maioria descendentes de negros escravos que lá foram se instalando após a abolição da escravatura.

A comunidade formada pelas famílias trabalha na roça da fazenda para os donos da terra, praticamente em tempo integral, sem salário. As famílias podem se instalar na fazenda em casas “provisórias” que devem construir por si próprias, não podendo edificar em alvenaria, mas tão somente de barro batido, como faz a maioria, para não caracterizar ânimo definitivo de moradia; e nas folgas do trabalho podem cultivar alimentos e criar animais para seu próprio sustento, além de explorar algum produto in natura, no caso o buriti.

Os pais das meninas, Salustiana e Zeca Chapéu Grande, são pessoas importantes, atuantes e respeitados na comunidade, pois possuem habilidades na área da saúde realizando todos os partos, e curas pelas práticas medicinais com ervas, assistindo a todos como missão de vida religiosa. E, nessa mesma acepção recebem em sua casa os integrantes da comunidade nas festas religiosas, denominadas “Jarê”, de origem africana, quando os espíritos (os encantados como chamam), se manifestam através de algumas pessoas como o pai das irmãs protagonistas. Revela-se aí o misticismo afro-brasileiro. É um momento de alegria e convívio de todos.

Várias histórias vão sendo narradas no transcorrer do romance sobre fatos da vida das irmãs, família e pessoas daquela comunidade, sobre como cada um sente a vida em seus pensamentos na sua própria complexidade interna, julgando o justo e o injusto, sobre como se defendem e vão se tornando fortes, pelas dificuldades sofridas com os imprevistos da natureza, secas e enchentes, com alegrias e tristezas do passar dos anos, vidas em geral sofridas e sem recursos. Fatos esses que sabemos, retratam a história desse país.

Tudo isso vai trazendo consciência ao leitor dos fatos da herança cultural da escravidão, da exploração de pessoas pelos donos da terra, da aceitação dessa condição de servidão como normal pelos resignados mais velhos, bem como do posterior inconformismo que vai surgindo entre os descendentes mais jovens, e sua tentativa de fazer justiça influenciando toda a comunidade na ideia de reivindicar as terras onde vivem há muito tempo. 

Na trama, contra essa luta dos trabalhadores pelos seus direitos vem a repressão dos donos da terra com morte ao lider dos insugentes, ligado a Bibiana que também é atuante, bem como a vingança da parte contrária, com morte do proprietário da terra.

O romance é narrado especialmente pelas personagens principais iniciais, ora Bibiana, ora Belonísia, e no final também por um espírito, uma encantada, a Santa Rita Pescadeira que incorpora uma mulher nas festas Jarê, e no final vagueia “incorporando” as irmãs em momentos de coragem.  

Gostei de ler Torto Arado porque entendo que esse saber consolida mais um pouco a consciência que devemos ter dos fatos que ocorreram no Brasil nos tempos da escravidão e abolição, e as injustiças sociais que ainda ocorrem com o racismo, a pobreza e a falta de oportunidades. 

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