A REFLEXIBILIDADE DO VERBO OCUPAR. A ocupação - Julián Fuks
A reflexibilidade do verbo ocupar
A ocupação, de Julián Fuks
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FUKS, Julián. A ocupação. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. 134 p.
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Eduardo Ferrinha Alves Moreira
Faculdade de Educação - Unicamp
O paulistano Julián Fuks, nascido em 1981, foi considerado ainda em 2012, pela revista literária Granta, um dos melhores escritores jovens brasileiros. Dez anos depois, o autor, crítico literário e colunista ganhou às manchetes dos jornais após virar alvo de ataques de apoiadores do presidente da República, por conta de uma crônica sobre a expectativa ante os eventos previstos para a comemoração do bicentenário da Independência do Brasil. Fuks publicou A ocupação em 2019, quatro anos após o lançamento de seu prestigiado A resistência, que conquistara os prêmios Jabuti e José Saramago.
Cada um dos 41 curtos capítulos do livro, de aproximadamente três páginas cada, trata isoladamente dos três mundos que compõem a rotina de Sebastián, o narrador: ele interagindo com a esposa que tenta engravidar, ou visitando o pai agonizante no hospital ou, por último, frequentando o ambiente que dá título ao livro. O lugar existe de verdade. Trata-se de uma ocupação no extinto Hotel Cambridge, na avenida Nove de Julho, 210, em São Paulo – o endereço é informado na página 13 – e já havia inspirado o longa – metragem Era o Hotel Cambridge (2015), da diretora Eliane Caffé, sobre a luta por moradia e o drama dos refugiados na metrópole.
Contudo, a história não começa no Cambridge. O primeiro capítulo mostra o protagonista e sua companheira caminhando pelo arruinado e perverso centro da capital paulista, quando são abordados por dois pedintes: primeiramente um homem desejando um copo de pinga e, depois, um garoto pedindo um suco. Essa introdução, episódica e aparentemente desconexa dos demais eixos da história, na verdade apresenta as figuras do velho e da criança que hão de alternar-se durante toda a narrativa.
Sebastián, desde a infância poupado de experiências fúnebres, pensa muito sobre o fim da existência enquanto vela seu pai no leito do hospital. Relembra a morte da tia paterna e do cachorro da família. As memórias, trazidas ao leitor em camadas, constroem o perfil do pai: perseguido pelo antissemitismo, militante argentino que abrigou-se no Brasil para fugir da ditadura em sua pátria. No decorrer dos capítulos, aprende-se a gostar daquele pai, a ter saudade do que fora, a lamentar sua humilhante condição atual e a temer seu aparente fim irremediável. Numa dessas visitas, o protagonista, herdeiro do ativismo político, reflete sobre a condição do Brasil e “o retorno paulatino do país ao seu passado autoritário” (p.20). A relação entre pai e filho e as agressões à democracia retornam no final do livro, em duas tocantes cartas trocadas entre Fuks (não Sebastián) e Mia Couto. Aparecem límpidos os paralelos entre o Brasil contemporâneo e Moçambique da infância do escritor africano.
Nos episódios que abordam a ocupação, Sebastián – alter ego do autor, como informa a contracapa – torna-se caçador e divulgador de depoimentos. Detalhes que somente o discurso direto poderia trazer aos leitores, provocando-lhes genuínas comoção e empatia. É como diz a epígrafe, de Mia Couto: “Não há sangue dos outros. Em cada um que sangra todos nós esvaímos” (p. 7). Imagine seu parque preferido virando cemitério! Sejam da Síria, sejam oriundas de algum barraco ao pé do morro, as personagens do Cambridge soam “gente como a gente”, mas que de repente perderam tudo. Uma delas, haitiana, até repreende o interlocutor - e a nós, leitores, por tabela: “Você quer que eu conte do terremoto, não é?” “Quer que eu lhe empreste a minha comoção, a minha dor?” (p. 71). A guerra e a miséria não deveriam ser produto de entretenimento para as pessoas mais privilegiadas. Sebastián esforça-se em ser relevante para o movimento social, mas não passa de um intruso. Pior, aproveita-se da ocupação como escape de seus próprios dramas fora de controle.
Regularidade, ritmo e retomadas. Como rimas de um poema. Cada pequeno episódio trata de apenas um dos já mencionados estratos da vida do protagonista, os quais se reapresentam após determinado intervalo, à semelhança de um esquema de rima. Do capítulo dois ao cinco, os temas são, respectivamente, pai (a), Cambridge (b), Cambridge novamente e esposa (c): abbc. Na sequência, abca / abcb / cbba. E por aí vai… nota-se a menor ocorrência de c, representante do amor romântico, confirmando a identidade majoritariamente social e existencial do romance. Mas as três linhas narrativas possuem igual relevância para o texto, e todas são conduzidas até o final com igual primor.
Ainda sobre o tema c, quando Fê, a esposa, protagoniza três capítulos consecutivos, do 28 ao 30, o leitor encontra os momentos mais sublimes do livro, narrados de forma lírica, intensa e pungente. Nada surpreendente para quem já fora agraciado com a obra-prima que é o quinto parágrafo, onde o narrador discorre em menos de duas páginas sobre a esposa que decidiu se tornar mãe, abandonando a convicção contrária de mais de uma década. Sobre o vigésimo primeiro capítulo, quando o narrador acompanha a mulher grávida no primeiro ultrassom, trata-se de um exemplo concreto de que a literatura diz o que não sabemos expressar e fala com mais precisão o que queremos dizer. E A ocupação é essencialmente isto: engendrar-se – ser ocupado – a partir de diferentes discursos, que vêm não somente de outras pessoas, mas também da revisita absorta às próprias memórias e das conjecturas sobre as possibilidades da vida.
REFERÊNCIAS
Companhia das Letras. Autores do Grupo Companhia das Letras. Disponível em <https://www.companhiadasletras.com.br/autor.php?codigo=03491>. Acesso em: 19/set./2022.
Instituto São Paulo Antiga. Hotel Claridge/Cambridge. Disponível em <https://saopauloantiga.com.br/hotel-cambridge/>. Acesso em: 19/set./2022.
MACHADO, Lívia. Ocupação 'Hotel Cambridge' vira filme e moradores sonham com fim do preconceito e com casa própria. Portal G1. Disponível em: <https://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/ocupacao-hotel-cambridge-vira-filme-e-moradores-sonham-com-fim-do-preconceito-e-casa-propria.ghtml>. Acesso em: 19/set./2022.
Legal Eduardo, vou ler o romance futuramente.
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