O AMOR É SEXUALMENTE TRASMISSÍVEL, E A DOR TAMBÉM. Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios - Marçal de Aquino


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AQUINO, Marçal. Eu receberias as piores notícias dos seus lindos lábios. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
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por Matheus Jurado Vicente , MTJV  (FCA - Unicamp)




 “São demais os perigos dessa vida para quem tem paixão”
(Soneto do Corifeu,Vinicius de Moraes).


“Fotografar pessoas é violá-las e vê-las como jamais podem ver-se a si próprias,
conhecê-las como nunca poderão conhecer-se; é transformá-las em objetos cuja
posse nós asseguramos simbolicamente”
(Susan Sontag).


“A esperança é o pior dos venenos, (...) porém muitas vezes é também o único remédio”
(Marçal de Aquino, p. 152).


Entender a estética de Marçal Aquino passa também por conhecer sua biografia e, sobretudo, as diversas atividades culturais e intelectuais com as quais ele se envolveu. É importante assinalar que o hibridismo e a influência de outras linguagens, como a cinematográfica e a jornalística, são, com frequência, vinculados à sua escrita.

Nascido em Amparo, cidade a 140 quilômetros da capital São Paulo, o autor é atualmente considerado um dos grandes autores da literatura brasileira contemporânea. É escritor, roteirista, revisor, repórter e já foi redator nos jornais O Estado de S.Paulo e Jornal da Tarde. Entre seus principais livros, destacam-se as coletâneas de contos “Faroestes” (2001) e “Famílias terrivelmente felizes” (2003), a novela “O invasor” (2002) e os romances “Cabeça a prêmio” (2003) e “Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios” (2005), os três últimos adaptados para o cinema.

O romance “Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios”, narrado em primeira pessoa pelo narrador-protagonista, conta a história de Cauby, um fotógrafo de 44 anos de idade que saiu de São Paulo para trabalhar numa região de garimpo em Santarém, interior do Estado do Pará, onde parece acontecer uma nova corrida do ouro e a população ribeirinha assiste ao desmatamento da floresta.

O enredo é permeado pela história da paixão avassaladora de Cauby por Lavínia, a esposa do pastor Ernani que tem problemas emocionais profundos. O triângulo amoroso é enredado sob as sombras do garimpo e do poder da mineradora sobre os trabalhadores, que culmina em assassinatos e atinge diretamente o destino dos protagonistas.

Em momentos distintos, o livro apresenta informações de Cauby, que já morou em Paris, tem uma irmã que vive nos EUA, é órfão, trabalhou muito tempo como free lancer para revistas e jornais e agora vive de fotografar os cenários e as pessoas do extremo norte brasileiro, recebendo uma bolsa. Lá, vive uma história de amor inédita em sua vida, que o obriga a abdicar de sua identidade e a desafiar a morte numa experiência visceral.

A trajetória do fotógrafo vai sendo explicada por meio de pistas, como na história de um fotógrafo chamado Chang, que foi morto num escândalo de pedofilia; no mistério que envolve o jornalista Vicktor que prepara uma vingança silenciosa; na vida do pastor, que tirou Lavínia das ruas no passado e casou-se com ela, dentre outros eventos.Mesmo diante de todos os riscos, Cauby decide cumprir seu destino com o fatalismo dos personagens trágicos. "Nunca acreditei no diabo", diz ele, "Apenas em pessoas seduzidas pelo mal". 

É relevante assinalar que o romance está dividido em quatro partes e, estas, em diversos fragmentos. Na primeira parte, intitulada “O amor é sexualmente transmissível”, o texto intercala o encontro de Cauby e Lavínia com os acontecimentos contados sobre Marinês, mulher por quem seu Altino, velho morador da pensão de Dona Jane, na qual Cauby se hospeda, nutriu por toda a vida um amor platônico. O “Careca”, como é chamado pelo fotógrafo, vai contando sua vida de desencontros enquanto Cauby relembra sua passagem pela cidade, o florescer e as turbulências de seu relacionamento com Lavínia.

O ponto que une estas histórias é o amor, permeado pelas reflexões do narrador a partir do livro de Schianberg (romance fictício, que existe somente no livro) “O que vemos do mundo”. A narrativa também se estende na explicação de vida de Lavínia, especialmente na segunda parte do livro “Carne Viva”, sem firulas, sem rodeios, a vida estampada na cara dos leitores. O capítulo detalha que, quando menina, Lavínia foge de casa, do alcoolismo da mãe e dos abusos sexuais do padrasto, para passar por casas de abrigo, até chegar à prostituição nas ruas de Vitória.

Pela brilhante capacidade de explicação imagética, Marçal Aquino conta quase desenhando a história, como se fosse um filme. A menina era ignorada pela mãe retratada como drogada e foi abusada pelo padrasto quando adolescente. Teve o carinho da avó na infância, mas não durou muito tempo. Começou a fazer a vida nas ruas, se prostituindo para sobreviver. Paralelamente, explica que Ernani foi funcionário público a vida inteira. E ficou sem rumo quando a mulher morreu, ainda na meia idade, sem lhe deixar filhos. Na igreja, encontrou novo ânimo, virando pastor e divulgando a palavra de Deus pelos lugares mais ermos do país, quando conheceu Lavínia.

A chance de reintegração social de Lavínia se dá pelas mãos do líder religioso, o que, de certa forma, a apazigua emocionalmente. O encontro com o fotógrafo vai fazer com que ela traga novamente à tona suas ambiguidades. O personagem do pastor também é transformado pela experiência amorosa com Lavínia, que o leva a vivenciar inesperados limites carnais, questionando o universo espiritual em que ele vivia confinado até então.O mote do fanatismo religioso e as contendas locais que banalizam a vida humana foram postas no momento oportuno. Muitas vezes, observa-se digressões na história de Lavínia, que parecem se estender demais, muito embora até esclareçam mais a motivação da personalidade dela.

Em “Postais de Sodoma à luz do primeiro fogo” e “Poema escrito com bile”, terceira e quarta partes do romance, respectivamente, Cauby conta o desfecho da história de amor entre ele e Lavínia e o quanto a violência – gerada pelas profundas marcas de exploração da mineradora sobre os trabalhadores, os quais, influenciados pelos discursos evangelizadores do pastor, são incitados a fazer justiça com as próprias mãos – é determinante no destino destas personagens.

No geral, o livro é bem escrito e impactante pela sua representação do real, das dificuldades do mundo e das impossibilidades de se entender completamente as diferentes facetas de um amor.

“Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios” busca refletir sobre questões contemporâneas, sempre relativizando as razões de cada personagem, evitando a visão maniqueísta do mundo e permitindo que o comportamento dos personagens surpreenda por sua condição humana.

Comentários

  1. Comentário bem convidativo, Matheus! Parece ser um livro bem imagético mesmo. Gostei muito dos títulos das partes, do enredo e da humanidade das personagens. Vou buscar conhecer a obra de Marçal.

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