Passado, presente e a ancestralidade


VERUNSCHK, Micheliny. O som do rugido da onça. Companhia das Letras, 2021. (e-book)

                                                      

Priscila R. Celestino

Faculdade de Educação, Unicamp

 A princípio, o meu interesse na leitura de O som do rugido da onça foi pela temática dos povos ancestrais e a ideia da descrição da floresta amazônica, e mesmo por um conflito entre povos indígenas e homens brancos vindos do ocidente, que nada conheciam sobre a cultura do país chamado Brasil. No entanto, Micheliny Verunschk retratou, através de sua narrativa, o conflito não apenas entre povos da floresta e os vindos de além–mar, mas, também, conflitos internos, através de personagens bem construídas.

Situando o leitor no tema sobre o qual quer tratar, a autora inicia a narrativa com a frase “Quando Nimúe criou o mundo, o fez a partir de seu próprio corpo”, remetendo ao princípio criador, originário das narrativas dos povos ancestrais, aproximando o leitor do contexto da obra.

A personagem principal é Iñe-e, uma menina indígena, filha do chefe da aldeia do povo Miranha, irmã gêmea de um menino – Tsittsi. Um dia tem um encontro com Tipai uu, a Onça, Dona da Caça e inimiga do seu povo. É a partir desse momento que o seu destino e o dos cientistas alemães Martius e Spix se encontram, pois seu pai, acreditando que a menina fora encantada pela Onça, resolve entregá-la aos homens brancos. Assim, Iñe-e é levada juntamente com o menino Juri, outro indígena, inimigo do povo Miranha, filho do chefe da aldeia Juri, para além-mar, à distante cidade de Munique, na Alemanha do século XIX.

Há um entrelaçamento no tempo da narrativa do século em que vive Iñe-e e o século atual, quando entra na história a personagem Josefa, uma mulher mestiça com ascendência indígena, que migrou do norte do Brasil para São Paulo. As cenas, a partir desse momento, vão se intercalando, descrevendo a viagem de Iñe-e, a vida de Josefa e seu conflito de identidade.

Os indígenas Iñe-e e Juri chegam em Munique e são alvos da curiosidade da corte alemã. Através da narrativa podemos perceber como os povos da América eram recebidos pelos europeus, ou seja, como figuras excêntricas, selvagens, que não eram como eles e que pertenciam a uma outra espécie. Geravam curiosidade e ao mesmo tempo rejeição e temor.

As crianças indígenas recebem um batismo cristão e, por conseguinte, um novo nome – Isabella Miranha e Johann Juri do Brasil. Conforme é narrado: “Para ele (Martius) não há nome anterior a Isabella. Para ele, ela não tem história.” (p. 32) Perda do nome, perda da identidade. E é assim que Isabella ou Iñe-e não consegue mais escutar com tanta facilidade a voz do rio, de sua mãe, o chocalho, e vai aos poucos se esquecendo da língua de sua gente.

Em paralelo, é narrada a história de Josefa, que tem sua identidade ancestral abafada por sua avó e sua tia, por parte de pai. Andando pelas ruas de São Paulo, ela dá de cara com um cartaz que convida para uma exposição de retratos dos povos ancestrais do Brasil, vindos de Munique. Nessa exposição, ela vê o retrato de Iñe-e e se identifica com ela a tal ponto que resolve viajar a Munique a fim de buscar mais informações.

Penso que a personagem Josefa poderia ter um protagonismo maior durante essa busca identitária. Estava esperando um pouco mais da narrativa dessa personagem e da sua busca pela identidade ancestral. Achei que a autora não deu muita atenção à história paralela de Josefa, que poderia dar o tom dos conflitos existentes no tempo atual da identidade e ancestralidade dos povos indígenas brasileiros. De qualquer maneira, a história deixa bem claro a posição de que, tanto no passado como atualmente, os povos indígenas continuam a sua luta para que suas identidades não sejam apagadas, para que a sua história e cultura continuem vivas, de modo que não sejam percebidos como figuras excêntricas, como motivos de espetáculo por parte do “homem branco”.

Se pudesse classificar uma história como sabores, eu diria que o romance é “agridoce”, pois dribla momentos viscerais – cenas fortes, que causam raiva no leitor – com momentos de sutileza e, diria, até mesmo de sensibilidade.

A obra valeu o Jabuti de 2022, não só pelo tema, extremamente atual e de necessário conhecimento e debate pelo público, mas também por despertar em nós, brasileiros, o desejo de aprofundar o conhecimento da ancestralidade do Brasil. Parafraseando a cantora e ativista Katú Mirim, Se não respeitar (conhecer a ancestralidade da nação, enxergar com outras lentes) a raiz, vai respeitar o quê?

Comentários

  1. Priscila amei a temática do livro. A maneira como você descreveu a obra despertou bastante o meu interesse pela história.

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  2. Excelente comentário. Dei uns retoques na diagramação para melhorar um pouco mais o visual.

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  3. Muito bom seu comentário, Priscila! Me pareceu uma obra muito interessante e que vale a pena ser lida!

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  4. Priscila, adorei seu comentário e as discussões possíveis nesse livro me deixaram muito curiosa! Muito legal!

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