VIDAS PRETAS IMPORTAM: relatos de um genocídio


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Mukasonga, Scholastique. Baratas: Scholastique Mukasonga. Título original: Inyenzi ou les Cafards. Tradução: Elisa Nazarian. São Paulo: Editora Nós, 2018. 192p.

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Paulo Ricardo Gonçalves de Oliveira 
Faculdade de Educação - Unicamp 

Scholastique Mukasonga é uma escritora ruandesa cuja obra é conectada com a história do genocídio. Nascida em Ruanda, vivenciou um massacre que assolou seu país em 1994, quando mais de 800.000 pessoas, principalmente tutsis, foram brutalmente assassinadas em um dos eventos mais horríveis do século XX. “Baratas” é um testemunho vivo dos eventos que ela e sua comunidade enfrentaram durante esse período sombrio da história de Ruanda.

Os livros de Mukasonga são uma mistura poderosa de memórias pessoais e ficção, baseadas em fatos históricos que retratam com sensibilidade a experiência dos tutsis antes, durante e depois do genocídio. O livro explora temas como a identidade, a memória coletiva, o pertencimento e a resistência em meio à adversidade.

Amplamente aclamado pela crítica, "Baratas" foi reconhecido como uma contribuição importante para a literatura ruandesa e para o entendimento do genocídio em Ruanda. No entanto, como em qualquer análise crítica, é válido tecer algumas considerações.

Uma das principais características da escrita de Mukasonga é a sua abordagem pessoal e íntima dos eventos históricos, e nesse livro específico ela relata intimamente as relações familiares e extrafamiliares que antecedem o genocídio de uma maneira muito convidativa e suave, visto que o genocídio foi um dos maiores horrores do século XX. Ela utiliza elementos autobiográficos e memórias familiares para contar suas histórias, oferecendo uma perspectiva profundamente pessoal. Isso confere autenticidade e emoção às suas narrativas, permitindo ao leitor conectar-se de forma mais profunda com as experiências traumáticas vivenciadas pelos tutsis.

No entanto, a abordagem altamente subjetiva de Mukasonga pode limitar a compreensão mais ampla dos eventos históricos, pois, ao focar principalmente sua própria experiência e histórias de sua família, ela pode deixar de abordar as complexidades e nuances políticas, sociais e culturais que contribuíram para o genocídio em Ruanda. Isso pode resultar em uma visão parcial da história, deixando lacunas no entendimento do contexto mais amplo do conflito. Além disso, a escrita de Mukasonga pode ser excessivamente descritiva em certos momentos, resultando em uma narrativa que se arrasta em detalhes repetitivos. Embora a intenção seja criar um ambiente rico e vívido para os leitores, essa abordagem pode, por vezes, desacelerar o ritmo da história e prejudicar a fluidez da leitura.

No entanto, é importante ressaltar que a maioria das críticas direcionadas à obra de Mukasonga é baseada em considerações estéticas e preferências individuais. Sua escrita é valorizada por sua capacidade de transmitir as experiências pessoais e traumáticas do genocídio em Ruanda, bem como por sua dedicação em preservar a memória e honrar as vítimas. Sua contribuição literária é inegável e essencial para a compreensão e reflexão sobre eventos históricos tão devastadores.

A autobiografia de Scholastique Mukasonga apresenta uma série de pontos positivos que merecem destaque e que descrevo em seguida.

Autenticidade. A obra de Mukasonga é baseada em suas próprias memórias e experiências pessoais durante o genocídio em Ruanda. Sua voz autêntica e sincera traz uma genuinidade inegável aos relatos, permitindo que os leitores tenham uma visão íntima e realista dos horrores e das emoções vivenciadas durante esse período.

Testemunho histórico. A autobiografia de Mukasonga desempenha um papel importante como testemunho histórico do genocídio em Ruanda. Ao compartilhar sua história, ela ajuda a manter viva a memória das vítimas e a trazer à tona as atrocidades cometidas. Sua obra contribui para a compreensão e a conscientização sobre esse capítulo sombrio da história ruandesa.

Empoderamento feminino. Como mulher preta e ruandesa, Mukasonga dá visibilidade às experiências das mulheres durante o genocídio; essas mulheres constituem seus personagens, mas não são enaltecidos como uma personalidade de um apenas um personagem específico, ao mesmo tempo que a sua construção de personagens é individual ela também é coletiva, o que torna oculta a presença de um personagem ficcional. Ela aborda as dificuldades enfrentadas pelas mulheres ruandesas, seu papel na resistência e a resiliência que demonstraram em meio à adversidade. Sua obra destaca a importância de ouvir as vozes femininas e reconhecer sua contribuição na narrativa histórica, além de enaltecer a importância da literatura da África em outros países.

Sensibilidade cultural. A escrita de Mukasonga reflete sua conexão profunda com a cultura ruandesa, em "Baratas" compartilha tradições, costumes e histórias transmitidas de geração em geração. Em todos os capítulos é possível viver com ela suas alegrias e suas culturalidades, mas também o medo e a repressão, destacando a riqueza cultural de seu povo. Isso enriquece a leitura, proporcionando uma compreensão mais abrangente da sociedade ruandesa e de suas tradições pré-genocídio.
Resgate da memória. Ao escrever sobre sua própria família e sua comunidade, Mukasonga resgata memórias individuais e coletivas. Esta obra se torna uma forma de honrar e lembrar aqueles que foram perdidos durante o genocídio. Além disso, ela também oferece uma oportunidade para as gerações futuras aprenderem com o passado e evitarem a repetição de tais tragédias.

Impacto emocional. A escrita de Mukasonga é emocionalmente impactante, evocando uma ampla gama de sentimentos nos leitores. Sua habilidade em transmitir o sofrimento, a dor, a esperança e a resiliência através de suas palavras criam uma conexão profunda entre o autor e o leitor, despertando empatia e reflexões sobre temas universais, como a violência, a identidade e a sobrevivência.

A leitura do livro "Baratas" é uma experiência profundamente impactante e enriquecedora. Através de sua narrativa autêntica e sensível, Mukasonga transporta os leitores para um período sombrio da história de Ruanda, permitindo que testemunhem as emoções intensas e os desafios enfrentados pela comunidade tutsi durante o genocídio. Sua habilidade em mesclar memórias pessoais e ficção baseada em fatos históricos cria uma atmosfera envolvente e comovente, enquanto suas descrições e sua linguagem poética capturam a essência das experiências vividas. Ao ler "Baratas", somos levados a refletir sobre a importância da tolerância, do respeito e da busca pela paz, fazendo-nos apreciar a resiliência e a força do espírito humano diante de adversidades inimagináveis. Esta obra é uma leitura essencial para aqueles que desejam compreender a história de Ruanda, aprender com os erros do passado e cultivar a empatia em relação às vítimas de genocídios e conflitos em todo o mundo.

Comentários

  1. Precioso comentário. Nas atuais adversidades e intolerância política, a expressão pertinente é 'aprender com os erros do passado', visto que, em Ruanda, culminou em um massacre o meio século de intolerância étnica. Por mais empatia, super vale a leitura.

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  2. Paulo, esses diversos olhares que você observou na obra me deixaram com vontade de conhecer o livro e a autora. Pareceu-me uma obra obrigatória para os dias atuais. Obrigada!

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Amei a sua escolha e o modo como você apresentou o livro, Paulo! Uma análise histórica, acrescida de um relato biográfico, sobre um tema tão antigo, mas infelizmente tão atual, como genocídio de vidas pretas, assim como o racismo ainda muito presente ao redor do mundo, com certeza faz dessa obra uma leitura extremamente necessária. Parabéns!!

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  5. Que comentário interessante, Paulo! Já assisti um filme sobre o massacre de Ruanda, mas você instigou minha curiosidade para acompanhar o relato detalhado da autora sobre esse acontecimento tão triste.

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