O passado, o presente e as nossas escolhas
O passado, o presente e as nossas escolhas
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Madeira, Carla. Tudo
é rio. 5ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2021.
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Lindisay
Gerlach Neves Araújo
Aluna
de pós graduação da Unicamp
Tudo
é rio é um livro que se sente o gosto, que provoca o corpo e aperta o
peito. Durante a leitura, a cada frase marcante e delicada sobre a vida, em
meio ao desenrolar da história, eu me perguntava “como essa mulher consegue
escrever bonito assim? De que lugares interiores vem essa sensibilidade nua e
crua com as palavras?” A essa mulher, me refiro a Carla Madeira, brilhante
autora brasileira, mineira, que se revelou através desta obra publicada em
2021.
Tudo
é rio não tem pudor nem tabu - nele tudo é dito como de fato é. Os desejos
e as contradições humanas, as dores e as delícias que cada um carrega de sua própria
história, o moralismo, a hipocrisia religiosa, o machismo, a violência e alguns
sentimentos difíceis de lidar, como o ciúme, o perdão e o luto, são
escancarados ao longo dos acontecimentos da obra que tem como personagens
principais o casal Dalva e Venâncio.
O
casamento de Dalva e Venâncio tem fases. É precedido por resistência familiar e
um amor avassalador entre os dois. Após o casamento, Dalva precisa lidar com a
separação familiar, fazendo doer em especial a distância da mãe. Enquanto Dalva
guarda afetos de sua família, Venâncio traz consigo seus desafetos,
principalmente com o pai. A ausência da demonstração de amor paterno, a
rispidez e a ignorância no trato com o filho fizeram de Venâncio um homem muito
inseguro, o que desaguou no ciúme excessivo em sua relação com Dalva e levou a
uma grande tragédia envolvendo o filho que tiveram após algum tempo de casados.
Venâncio não teve pai afetuoso e não soube ser, nem soube dividir o maior amor
que já recebeu na vida: o de Dalva.
A
entrada de Lucy em suas vidas marca uma importantíssima fase desse casamento.
Lucy é uma menina que cresceu sem os pais e foi criada por uma tia muito
religiosa que tinha duas filhas - essa parte da história faz lembrar o conto de
fadas Cinderela. Lucy inicia um processo de revolta interna contra a tia ao
longo do tempo, após ir percebendo as hipocrisias, a exploração e a
diferenciação que a tia faz dela em relação às filhas. Tendo se tornado uma
mulher muito bonita e sedutora, Lucy tem a sagacidade de usar seus dotes para
seduzir o esposo da tia – a quem ela tem como tio - como forma de vingança,
experimentando assim um caminho sem volta para uma vida de mais seduções,
libertinagem e independência financeira a qual ela adora, tornando-se a prostituta
mais cobiçada da cidade.
A
história se desenrola fazendo um paralelo entre o passado e o presente dos
personagens. Uma espécie de tentativa de explicar o porquê de as pessoas serem
como são, que marcas carregam consigo e configuram a sua estrutura atual.
Acredito que esta seja uma parte que a psicologia possa explicar melhor.
Afinal, julgo que os personagens precisavam de terapia! Contudo, entre uma
correnteza e outra, os caminhos de Dalva, Venâncio e Lucy se encontram. É nesse
momento que a narrativa fica ainda mais inquietante e provocante. Ameaças,
agressões, rejeição, desprezo, transferência, ilusões.... tudo acontece de
forma muito intensa entre os eles, até desaguar em um desfecho surpreendente
que nos provoca a pensar nas possibilidades de fases futuras dessa história.
Apesar
da trama trágica, alguns personagens nos arrancam afagos no coração e inspiram
um jeito bonito de ver a vida e se relacionar com o mundo. Personagens como
Francisca, uma amiga querida, e Aurora, mãe de Dalva, deixam a narrativa mais
leve. A autora, me parece, soube medir bem as doses daquilo que seria
suportável aos leitores.
Com
uma forma poética muito marcante e deliciosa de escrita, que não se perde nem
nos momentos mais duros da obra, Carla Madeira traz um desfecho que requer
tempo para processar. É um livro fácil de se envolver e difícil de terminar.
Nossa, depois desse review maravilhoso, com certeza irei começar a leitura!
ResponderExcluirDeu vontade de ler novamente. É muuuuito bom esse livro!
ResponderExcluirBeleza de comentário
ResponderExcluirSuas palavras me fizeram recordar trechos marcantes do livro e me deram vontade de lê-lo novamente!
ResponderExcluirinspirador a forma que você descreve o livro e sua relação com ele!
ResponderExcluirObrigada pela partilha, Lindsay! Acho que a Carla escreve com poesia e filosofia, pelo jeito. E eu super gosto disso. Histórias que falam com e no coração.
ResponderExcluirQue realto agradável. Estamos necessitados de leituras assim, como a que a Carla Maderia oferece. Livro anotado para futuras leituras.
ResponderExcluirAdorei o seu olhar, Lindsay, para os fragmentos de inquietação e leveza da obra! Eu também senti que Carla Madeira cuida do leitor quando aperta e afaga a leitura. Já estou sedenta pela releitura do livro!
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