Quem são essas meninas?

 


Quem são essas meninas?

TELLES, Lygia Fagundes. As Meninas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1974.

 

Juliana de O. Palermo

Mestra em Linguística Aplicada – Unicamp



Querido leitor, imagino que, se você não sabe nada a respeito dessa obra, ao ler o título pode ser que você pense se tratar de uma história de algum modo pueril, encantadora, inocente e graciosa. Não há como negar que o romance As meninas, de Lygia Fagundes Telles, é uma obra encantadora. Quanto ao resto dos adjetivos listados acima, precisamos conversar um pouco...

Talvez sua opinião inicial mude um pouco se eu te contar que esse livro foi publicado no ano de 1973, em plena ditadura militar no Brasil. Eventualmente, pode mudar ainda mais se você souber que a autora afirmou, certa vez: “Eu luto com a palavra. É bom? É ruim? Não interessa, é a minha vocação”. E pode ser que você se surpreenda ainda mais quando souber que o livro aborda temas como sexo, aborto, cirurgia de reconstituição vaginal, revolução armada, abuso sexual, drogas pesadas, abuso de álcool e questionamentos à noção de família tradicional. Surpresa!

As meninas do romance de Lygia Fagundes Telles não são tão meninas assim. Trata-se de três amigas universitárias que habitam o Pensionato Nossa Senhora de Fátima, dirigido por freiras. Lorena, protagonista do romance, é estudante de Direito. A mais intelectualizada das três, é uma jovem rica, de uma família tradicional de proprietários de terras, com uma tragédia envolvendo seu passado recente e seus irmãos gêmeos (Rômulo e Remo). Romântica, apaixonada por ballet e poesia, coleciona objetos de grife, tem obsessão com limpeza, alimenta-se praticamente como um passarinho e, a princípio, parece ser uma jovem fútil. Espero que, como eu, você também se surpreenda com a força que essa menina vai demonstrar ao longo da obra, querido leitor.

Lia, a segunda moça, é estudante de Ciências Sociais e está envolvida com a luta armada contra a ditadura militar. Filha de uma baiana com um alemão ex-nazista (!), Lião, como é chamada por Lorena, sofre por conta de seu namorado, Miguel, ter sido preso pelos militares. É bom eu te avisar, querido leitor, que a trama se passa no ano de 1969, uma vez que há referências ao sequestro do embaixador americano Charles Elbrick (um estratagema dos revolucionários, que resultou na soltura de 15 presos políticos).

Agora só falta eu te apresentar Ana Clara, amigo leitor. Talvez eu deva dar um spoiler aqui e dizer que o apelido dela entre as amigas é Ana Turva (por favor, não deixe de reparar na brilhante antítese entre clara – turva). Estudante de Psicologia, Ana é a mais bonita de todas, a que tem o comportamento mais liberal dentre as três amigas, mas, ao mesmo tempo, é a mais problemática: tem um passado pesadíssimo envolvendo pobreza, uma mãe prostituta e suicida e abusos sexuais, lembranças que Ana tenta (sem sucesso) entorpecer com o uso abusivo de drogas pesadas (incluindo heroína) e álcool.

 Ufa! Que meninas, hein? Talvez você também goste de saber que esse livro é o primeiro da história da literatura brasileira a apresentar a descrição de uma cena de tortura praticada pelo regime militar. E olha que ele foi publicado durante a ditadura! Como foi que passou pela censura? Pois é, caro leitor. Provavelmente os censores do regime se deixaram enganar pela candura do título… É sabido que a inteligência desses caras não era lá das mais brilhantes. Mas é mais provável ainda que eles não tenham lido a obra toda, e isso se deve a uma razão muito simples: a leitura desse romance não é nada fácil!

Sim, querido leitor, não vou mentir para você, que não estou aqui pra isso, longe de mim! A linguagem utilizada nessa obra pode dar um nó na sua cabeça no início, e é possível que você leve várias páginas até se familiarizar com o estilo que a Lygia Fagundes Telles usou na composição desse romance. Isso se deve, principalmente, a três características que encontramos na obra (e aqui peço licença para usar uns termos técnicos, mas juro que já te explico): narrativa polifônica, fluxo de consciência e discurso indireto livre. Pra começar, não há um só narrador, mas quatro (!). Além de um narrador em terceira pessoa, a narrativa também é contada pelas três meninas (Lorena, Lia e Ana Clara), porque acompanhamos os pensamentos delas, na técnica conhecida como fluxo de consciência. É como se estivéssemos lendo tudo o que se passa na cabeça das personagens, em tempo real. E aí, já viu: sabe como é a bagunça dos nossos pensamentos, né? A gente vai ligando uma coisa na outra, emenda as ideias, uma coisa leva a outra, e a gente pensa sem parar. Isso acaba resultando, na obra, em parágrafos gigantes e confusos, com menções a eventos e personagens que ainda não foram apresentados para nós (até porque, na nossa cabeça, a gente não fica o tempo todo explicando as coisas pra nós mesmos, né?).

Se fosse isso, até que estava bom. O que ocorre é que a dona Lygia muda o foco narrativo sem nos avisar. Isso mesmo! No meio de uma página, quando a narrativa estava sendo contada do ponto de vista de Lia, por exemplo, do nada, sem aviso, a gente entra na cabeça da Lorena, e ela passa a contar a história. Essas mudanças bruscas se dão o tempo todo, e a gente leva um tempo até se acostumar. Tudo isso regado a muito discurso indireto livre, que é quando a voz do narrador se mistura à voz do personagem, com barreiras muito tênues entre essas vozes narrativas. Assim, fica um pouco difícil acompanhar de quem é a ideia que está sendo veiculada em determinado trecho, já que estamos acompanhando a cabeça de uma personagem, mas que faz referência ao pensamento de alguém a quem ela se refere, usando o discurso indireto livre. Ufa! Não é à toa que os censores não entenderam nada! Provavelmente desistiram da leitura nas primeiras páginas. Desse jeito, o livro passou pela censura, foi publicado em 1973 e está aí até hoje, para você ler agora, se quiser, querido leitor.

Eu recomendo que você leia, é claro. Sabendo de antemão de toda essa dificuldade que te antecipei. Dificuldade que, na verdade, não tira o brilho da obra, só o aumenta e confirma como Lygia Fagundes Telles é, sem sombra de dúvidas, um dos maiores nomes de nossa literatura, capaz de captar as nuances de um momento histórico tão cruel e importante de maneira lírica, honesta e emocionante.       

Comentários

  1. Gostoso de ler, leve, mostrando os principais núcleos de ideias do romance de LF Telles - um estilo que fala diretamente com o leitor e o convida a saber mais sobre os temas tratados na obra.

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  2. Uau! Que escrita fantástica... Ju, eu gosto muito desse estilo de escrita que vai conversando com quem está do outro lado. Você fez isso com um estilo, que me trouxe a sensação de como se estivesse conversando contigo "ao vivo" da primeira a última palavra. A sensação foi como se estivesse ouvindo sua voz, principalmente, alguns trechos, o uso de algumas palavras são como marcas suas... E, olha, que pouco te conheço! "Pesado", "pesadíssimo", por exemplo, acho que são palavras que são sua cara, rs. Agora, quanto as suas meninas, Lorena, Lia e Ana Clara, tentei fazer conexões com as outras três meninas (Smita, Giulia e Sarah), que estou conhecendo no romance escolhido por mim "A trança"... Quem sabe continuemos essa conversa em outro tempo e espaço. Pois, desse desse comentário, a Lygia, junto com "As Meninas" acabam de ser adicionadas na minha lista de intenção de leitura... Obrigada!

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  3. Ju! Que presente é a sua escrita! Confesso que tive que ler seu comentário e digeri-lo por uns dias. O livro me pareceu bem denso e complexo tocando em temas bem pesados. Seu comentário exprime um olhar atento e crítico! Parabéns! Fiquei com vontade de saber mais!

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  4. Obrigada, Ju, pela excelente tessitura da obra de Lygia. Assim como disse Wanessa, eu também me senti dialogando com você sobre "As meninas". O seu brincar com as palavras trouxe leveza para a densa leitura do texto, que já inclui na minha listinha. O seu olhar me deixou ansiosa para conhecer Lorena, Lia e Ana Clara!

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