Racismo à flor da pele: o retrato do preconceito no livro “Querido estudante negro”
João Paulo da Mata Nogueira
Mestrando em Educação – Faculdade de Educação – Unicamp
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CARINE, Bárbara. Querido estudante negro. São Paulo: Planeta do Brasil, 2023. 160 p.
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Preconceito. Realidade. Superação. Esses são os temas que circunscrevem esta obra. Nesse romance epistolar o leitor acompanha a história de uma jovem negra pobre que vive em periferia e escreve cartas ao seu amigo que também é negro. No romance não lemos suas respostas, mas pelas cartas escritas pela protagonista, sabe-se que seu amigo é LGBTQIA+ e pertence a uma classe social mais abastada. Ao longo dos capítulos se passam alguns ciclos diferentes da vida da protagonista e, por ser escrito em primeira pessoa, não são raras as vezes que a personagem parece estar conversando conosco, narrando as desventuras que se apresentam às jovens negras e pobres.
O preconceito fica marcado ao longo da história, que por falar do dia a dia, não é difícil reconhecer a si mesmo ou a um amigo que vive situações semelhantes. A questão da personagem principal beira a desumanidade pelos atos praticados pelos seus colegas de classe.
Em uma das epístolas que versa sobre o fim do segundo ciclo do ensino fundamental, aproximadamente, é oferecido um salgado da cantina para a protagonista. Mesmo desconfiada, ela o come saboreando cada pedaço, contente por ter recebido um gesto de gentileza dos colegas. A personagem narra o que sucede: “Mas quando terminei o lanche, todo mundo começou a rir muito. Era de mim. Me contaram entre risadas que o salgado era do chão, que tinha caído e, em vez de jogarem no lixo, me deram para comer” (p. 42). Em que circunstâncias e sob que relações de poder as interações se estabelecem desde criança?!
A realidade é transcrita em palavras uma vez que, conforme mencionado anteriormente, nós mesmos ou algum amigo ou familiar próximo, já pode ter vivido situações como as da protagonista. É curiosa a descoberta que a literatura pode gerar - você pode perceber que sofreu preconceito ou pode perceber também os seus próprios preconceitos. Nesse sentido, é possível que emerjam reflexões sobre quem somos a partir de que sociedade em que vivemos.
Onde estão os negros na nossa sociedade? Onde estamos acostumados a vê-los? Neste romance, a personagem manifesta interesse em estudar no Centro Federal de Educação Tecnológica (CEFET), porém o seu professor de matemática gargalha na sua cara. E ela ainda acrescenta: “[...] e tipo, não é somente ele não. Todo mundo aqui da favela, quando eu falo que vou estudar no CEFET, me diz que aquele colégio não é para mim. Que é impossível passar. Mesmo na minha certeza, estou começando a duvidar, saca? Sei lá, espero que dê tudo certo”. (p. 55)
A partir do trecho supracitado, é possível traçar um paralelo com um construto da psicologia sociocognitiva chamado crenças de autoeficácia. Elas resultam da nossa crença na nossa capacidade de organizar ou realizar alguma ação (Bandura, 1997). Elas são formadas a partir de quatro fontes: a experiência prévia, a experiência vicária, a persuasão verbal e os estados fisiológicos e emocionais. Respectivamente, se já conseguimos realizar algo, se observamos alguém parecido conosco conseguindo realizar a ação, se recebemos mensagens de incentivo daqueles que respeitamos e se estamos bem física e emocionalmente, isso pode implicar um aumento das nossas crenças de autoeficácia o que nos deixa mais motivados, estabelecendo objetivos mais audaciosos, mais confiantes para os desafios e mais resilientes para as dificuldades que podem aparecer. Por isso, imagine alguém que recebeu gargalhadas ao expor o seu sonho de estudar, não vendo ninguém parecido consigo conseguindo traçar um caminho parecido e, ainda, recebendo mensagens de dúvidas da vizinhança. A dúvida na capacidade da personagem é fomentada a partir desses sinais ambientais e sociais que ela recebe.
Voltando mais explicitamente para o texto, na sua primeira tentativa por meio do vestibular, a personagem é reprovada. Porém, estuda bastante e faz a prova novamente. Quando sai o resultado, ela relata: “[...] superansiosas, como você sabe que sou, andei os treze quilômetros de distância até a escola, deu umas três horas de caminhada, e quando cheguei lá o meu nome estava bem bonito escrito na lista dos aprovados. (...) Véi, é uma sensação linda entender que o problema não sou eu, mas que há um problema imenso em relação ao que a sociedade pensa sobre nós da periferia. Algo realmente libertador”. (p. 63-34) Nesse trecho a superação entra em evidência. Mesmo em condições muito adversas, ela conseguiu entrar para a escola que almejava. Uma vitória em meio a um mar de dificuldades. Uma tomada ofegante de ar para quem estava sendo sufocada pelas circunstâncias da vida.
Fica evidente também como as circunstâncias são desiguais, a protagonista não tinha dinheiro para pagar o transporte, andou a pé até a escola para ver o resultado. Um choque de realidade para algumas pessoas que estão muito distantes de situações desse tipo e que pensam que não pode existir uma história assim. Após esses relatos, a protagonista ainda escreve sobre muitos outros acontecimentos semelhantes em outros ciclos da sua vida.
As artes conversam entre si e harmonizam bem. Ao ler o livro, uma canção que complementa e combina com a temática e me veio à mente com certa frequência foi “Testando”, de Ellen Oléria: “o imaginário dessa gente dita brasileira é torto / Grita pela minha pele qual será o meu fim / Eu não compactuo com esse jogo sujo / Grito mais alto ainda e denuncio esse mundo imundo / A minha voz transcende a minha envergadura / Conhece a carne fraca? / Eu sou do tipo carne dura” (Testando, Ellen Oléria, 2009). A temática do racismo estrutural é denunciada tanto no livro quanto na canção, em particular, toca-me o primeiro verso mencionado visto que o racismo estrutural se traduz em nossos imaginários — quando aprendemos (inconscientemente) que o lugar do negro é na cadeia, que ele não pode ser o gerente da empresa ao ver uma foto dele(a), que a universidade ainda é um lugar privilegiado de brancos, pois nas salas de aula há uma grande maioria de alunos brancos e somente um ou dois alunos negros.
A literatura nos ajuda a refletir sobre nossa realidade e, a partir da leitura, alterá-la. Deixo a sugestão do livro para que professores trabalhem a temática porquanto há diversas situações narradas nas cartas apresentadas na obra. Além disso, elas são curtas e possíveis de serem trabalhadas em uma aula ou mais aulas, a depender das intencionalidades pedagógicas. Realço, portanto, o potencial da leitura, valendo-me das palavras de Rildo Cosson em seu livro “Como criar círculos de leitura em sala de aula” (Contexto, 2023): “A leitura é, portanto, uma espécie de atualização em que o texto do passado passa a ser do presente, mantendo paradoxalmente ambas as posições, ou seja, o texto é do passado, mas, porque o li, ele também passa a ser do meu presente” (p. 15). Nesse sentido, o leitor encontra em “Querido estudante negro” um romance epistolar que conversa intimamente com a nossa cultura por se passar na Bahia e por denunciar uma das mazelas da nossa sociedade com a qual convivemos diariamente em variados ambientes sociais que frequentamos: o racismo.
A narrativa me fez recordar de um caso em uma distante sala de aula. Chorei mais uma vez ao rever no quadro da memória uma triste história. Que fim levou aquela menina negra, que sofria apagamento, racismo e humilhações em uma sala de aula de 1989? Pretendo ler o livro.
ResponderExcluirDiabo a reprodução do preconceito no mundo. Meus melhores amigos de juventude foram os negros e os japoneses .
ResponderExcluirQue pesado! Que dor senti ao ler a cena do salgado! Seu comentário aumentou a minha responsabilidade enquanto professora, enquanto cidadã, de dar voz à temática não apenas sobre o racismo, mas sobre esse olhar preconceituoso da humanidade! Obrigada, João Paulo, pela indicação do livro!!!
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